Durante uma mesa de diálogo da 48ª sessão do Conselho de Direitos Humanos (CDH) das Nações Unidas (ONU) na manhã desta quarta-feira (29), o advogado indígena e assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Ivo Makuxi, apresentou informações sobre o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que definirá o futuro das demarcações de terras indígenas e alertou para o risco de que violações contra os povos indígenas sejam legalizadas pela tese do “marco temporal”, em análise neste processo.
A fala ocorreu durante o diálogo interativo [1] com o Mecanismo de Experts sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU (EMRIP). O diálogo foi realizado por meio de videoconferência, em função da pandemia de covid-19, e teve participação da vice-presidente do CDH da ONU, Keva Lorraine Bain.
O Mecanismo apresentou um estudo [2] sobre o direito dos povos indígenas à autodeterminação, garantido em instrumentos jurídicos internacionais como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas.
Em sua fala, o assessor do CIR, que representou também o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) neste espaço, ressaltou a convergência que existe entre o direito indígena à autodeterminação e a tese do indigenato, que embasa a Constituição Federal de 1988 e se contrapõe à tese do marco temporal, defendida por ruralistas e outros setores econômicos interessados na exploração e na apropriação das terras indígenas.
Ambas as teses estão no centro da disputa no julgamento do STF que definirá o futuro das terras indígenas [3] e que trata, no mérito, de uma ação possessória envolvendo o território do povo Xokleng. Com status de repercussão geral, a decisão tomada neste caso servirá de diretriz para todos os processos de demarcação de terras indígenas no país.
No início de setembro, o julgamento foi suspenso por um pedido de vista [4] do ministro Alexandre de Moraes, após os votos do ministro relator, Edson Fachin, favorável aos direitos indígenas [5], e do ministro Nunes Marques, favorável à tese ruralista do marco temporal.
Em síntese, a tese do marco temporal pretende restringir as demarcações de terras indígenas apenas àquelas áreas que estivessem sob a posse comprovada dos povos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A teoria do indigenato, por outro lado, reconhece os direitos indígenas como originários, ou seja, anteriores ao próprio Estado.
“Contrária à Constituição e aos padrões internacionais está a tese do marco temporal, que limita o direito tradicional de ocupação das terras, legitimando o esbulho e contribuindo expressivamente para um processo de extermínio dos povos indígenas”
“A interpretação correta da Constituição, em linha com os padrões internacionais, é a de que cabe ao Estado apenas reconhecer o direito de ocupação tradicional das terras indígenas, de acordo com a tese do indigenato, presente no direito brasileiro há mais de três séculos”, afirmou Ivo Makuxi.
O CIR é uma das organizações que atuam como amici curiae [6] – “amigas da Corte” – no julgamento de repercussão geral sobre terras indígenas e é representado, no processo, por Ivo Makuxi. Ele foi um dos advogados indígenas que fizeram sustentação oral [7] na primeira parte do julgamento.
“Contrária à Constituição e aos padrões internacionais, está a tese do marco temporal, que limita o direito tradicional de ocupação das terras, legitimando o esbulho e contribuindo expressivamente para um processo de extermínio dos povos indígenas no Brasil”, alertou Ivo no diálogo com o EMRIP.
Em seu voto favorável à tese do marco temporal, no dia 15 de setembro, o ministro Nunes Marques reconheceu [4] que a tese propõe anistiar invasões, remoções forçadas e expulsões de indígenas de suas terras ocorridas antes da data de promulgação da Constituição Federal.
“Procura-se anistiar oficialmente esbulhos ancestrais, ocorridos em épocas distantes, e já acomodados pelo tempo e pela própria dinâmica histórica”, declarou o ministro.
A fala de Ivo Makuxi foi uma das diversas participações previstas sobre a temática indígena [8] pelo Cimi e outras organizações indígenas, indigenistas e da sociedade civil durante a 48ª sessão do CDH. Outras duas manifestações em diferentes espaços e um evento paralelo sobre os direitos indígenas estão previstos para esta semana.
Confira a declaração na íntegra:
Diálogo Interativo com o Mecanismo de Experts sobre os Direitos dos Povos Indígenas
Declaração oral de Ivo Cípio Makuxi
29 de setembro de 2021
Senhora Presidenta,
O Cimi estende mais uma vez seu apoio e apreço pelo EMRIP, um mecanismo indispensável na luta pelos direitos dos povos indígenas no âmbito global. Agradecemos a elaboração do estudo completo sobre o direito à autodeterminação dos povos indígenas, que reforça a própria Declaração e os dois Pactos da ONU, além de formar parte do jus cogens internacional.
No Brasil, o caso Xokleng, com status de repercussão geral, em análise pela Corte Suprema, toca justamente nesse direito, que foi corretamente abordado pelo ministro relator Edson Fachin. Ele reafirmou a correlação da tese do indigenato com o direito à autodeterminação, fazendo menções em seu voto à Declaração e à Convenção 169 da OIT. A interpretação correta da Constituição, em linha com os padrões internacionais, é a de que cabe ao Estado apenas reconhecer o direito de ocupação tradicional das terras indígenas, de acordo com a tese do indigenato, presente no direito brasileiro há mais de três séculos.
Contrária à Constituição e aos padrões internacionais está a tese do marco temporal, que limita o direito tradicional de ocupação das terras, legitimando o esbulho e contribuindo expressivamente para um processo de extermínio dos povos indígenas no Brasil.
Muito obrigado.