23/06/2020

Com apenas 0,02% do orçamento da União, valor gasto pela Funai até junho é o mais baixo em dez anos

Ações de demarcação e fiscalização de terras indígenas, muitas das quais invadidas durante a pandemia de covid-19, tiveram baixa execução orçamentária entre janeiro e maio de 2020

ATL 2018. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

ATL 2018. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Por Renato Santana e Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação – Cimi

O orçamento total da Fundação Nacional do Índio (Funai) para este ano representa 0,02% do orçamento da União, que é de R$ 3,6 trilhões. Os recursos destinados ao órgão indigenista nunca foram suficientes para dar conta da demanda, e a cada ano são reduzidos ainda mais. Com a pandemia do novo coronavírus, a defasagem se somou à baixa execução orçamentária para aprofundar as dificuldades vividas pelos povos indígenas em seus territórios.

O valor gasto pela Funai nos cinco primeiros meses de 2020 é o mais baixo dos últimos dez anos, em valores reais: R$ 189 milhões, segundo os dados da plataforma Siga Brasil, do Senado. O orçamento autorizado para o órgão, neste ano, é de R$ 640 milhões para todas as suas despesas – de pagamento de pessoal e previdência a ações como demarcação de terras e proteção dos direitos indígenas.

Embora o percentual executado entre janeiro e maio esteja dentro da média para o período, o fato de que o valor gasto é o mais baixo em dez anos reflete o contínuo estrangulamento do órgão no último período. Essa situação pode ser verificada também em relação ao orçamento de uma das principais atribuições da Funai, que diz respeito à proteção e à regularização dos territórios dos povos indígenas do Brasil.

Até junho, a Funai gastou apenas R$ 2,1 milhões dos R$ 20,4 milhões reais destinados à regularização, demarcação e fiscalização de terras e proteção dos povos indígenas isolados, o que equivale a aproximadamente 10,5% do orçamento disponível.

Se mantido o ritmo verificado nos primeiros cinco meses do ano, até o final de 2020 o órgão terá executado cerca de um quarto do valor destinado para estas ações.

O mesmo ocorre com o orçamento para demarcação e regularização de terras indígenas. Além do menor montante dos últimos dez anos, com apenas R$ 7,1 milhões, a atividade teve a mais baixa execução entre janeiro e maio desde 2011: R$ 84,7 mil, o que representa inacreditáveis 1,18% do já pequeno valor autorizado.

“O problema não é técnico nem financeiro, ele é eminentemente político”

R$ 6 mil por ação de fiscalização

Diversos povos indígenas têm denunciado a presença de invasores em seus territórios e cobrado dos órgãos públicos medidas de fiscalização e coação contra os invasores. Sob a pandemia, a devastação ambiental e os conflitos ocasianados pela presença de madeireiros, garimpeiros e fazendeiros em terras indígenas somam-se ao risco real de contaminação das populações indígenas pelo coronavírus, como vêm denunciando os Yanomami.

Apesar das diversas denúncias feitas pelos povos indígenas e dos riscos ampliados pela covid-19, somente R$ 823 mil dos R$ 6,6 milhões autorizados para ações de fiscalização de terras indígenas foram gastos nos primeiros cinco meses do ano – pouco mais de 12% do baixo valor disponível.

Segundo a Funai, o montante executado até o início de junho resultou na “participação em 136 ações de fiscalização em 63 terras indígenas”. Isso significa que, em média, foram gastos cerca de R$ 6.050 por ação de fiscalização – ou R$ 13.060 por terra indígena fiscalizada.

“A baixa execução dessas ações, em específico, tem a ver com uma escolha política do governo, que tenta a todo custo acabar com as demarcações e para quem a fiscalização atrapalha”, avalia Leila Saraiva, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). “As ordens que vêm de cima na Funai são mesmo para que essa ação não saia do papel. Ao mesmo tempo, pouco pessoal e com pouca competência técnica também contribuem para que o pouco recurso alocado não seja utilizado”.

A Funai sempre foi um órgão com insuficiente capacidade orçamentária, explica Alessandra Cardoso, também assessora política do Inesc. “O problema não é técnico e também não é financeiro, ele é eminentemente político”, analisa.

A baixa execução orçamentária para ações de defesa dos territórios indígenas que se verifica nos anos de 2019 e 2020 podem ser melhor entendidas se avaliada em conjunto com outras iniciativas do órgão, como a Instrução Normativa 09/2020, que permite a certificação de propriedades particulares dentro de terras indígenas cuja demarcação não está concluída, aponta o secretário executivo do Cimi, Antônio Eduardo de Oliveira.

“O empenho da Funai na aplicação do seu orçamento, principalmente em 2019 e 2020, demonstra descaso e um total descompromisso para com os direitos indígenas no Brasil. Isso vem de acordo com uma postura política do atual governo de desrespeito, preconceito e que tem gerado violência contra os povos indígenas no Brasil e contra a Constituição brasileira”, afirma Oliveira.

“Faltam ações para a regularização dos territórios, que está completamente paralisada, apesar das imensas dificuldades que os povos estão tendo e da reivindicação que eles têm feito para que essas ações tenham continuidade. Na verdade, existem ações da Funai no rumo contrário, como a retirada dos servidores públicos das áreas não regularizadas, a desistência de ações judiciais, a Instrução Normativa 09. Ou seja, a Funai foi totalmente aparelhada pelo agronegócio, que está tomando seus setores estratégicos. O órgão passou a fazer a defesa do agronegócio predador e não a defesa dos direitos indígenas”, critica.

 

 

Combate à pandemia

Desde o início da pandemia, a covid-19 já matou 324 indígenas, contaminou 4185 e atingiu 110 povos, conforme levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e dados divulgados pela Sesai. Com 36 óbitos para cada cem mil pessoas, a doença já atingiu uma mortalidade 50% maior entre os povos indígenas do que entre a população em geral, onde a mortalidade é de 24 para cada cem mil. Um estudo da Fiocruz aponta que 48% dos indígenas que buscam atendimento hospitalar acabam morrendo – a maior proporção do país (Fiocruz).

Para o novo Relator Especial das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas, José Francisco Cali Tzay, o desafio de lidar com a pandemia entre os povos indígenas vai muito além de combater apenas a sua doença. Trata-se, sobretudo, de prevenir o que a potencializa.

“Os povos indígenas que perdem suas terras e meios de subsistência são empurrados para uma maior pobreza, taxas mais altas de desnutrição, falta de acesso à água potável e saneamento, assim como a exclusão de serviços médicos, que, por sua vez, os torna particularmente vulneráveis a doenças”, declarou.

Nos três meses decorridos desde a declaração da pandemia de covid-19 pela OMS, segundo dados da plataforma Siga Brasil, a Funai executou R$ 6,2 milhões do total de R$ 23 milhões de reais de que o órgão dispõe para ações de combate à pandemia e proteção dos povos indígenas.

Deste total, R$ 18,3 milhões vieram de suplementações orçamentárias determinadas pelas Medidas Provisórias (MPs) 942 e 965, editadas pelo governo federal  em abril e maio para estabelecer ações emergenciais para o combate ao coronavírus. Outros R$ 4,7 milhões foram deslocados pelo próprio órgão para medidas deste tipo.

Nestes três meses, apenas 27% do valor destinado a ações de enfrentamento de emergência ao coronavírus foram efetivamente gastos, especialmente em gêneros de alimentação (R$ 3 milhões), material de limpeza e produtos de higienização (R$ 570 mil) e pagamento de diárias (R$ 391 mil).

A Funai informa, por outro lado, que já investiu R$ 20,7 milhões em ações de combate à covid-19. Segundo o órgão, o valor teria sido gasto em ações como distribuição de materiais de higiene e limpeza e a entrega de cestas básicas, realizada em parceria com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

“Temos como desafio não apenas conter o máximo a chegada do vírus nas aldeias, mas também lidar com as invasões dos territórios, a falta de saneamento, acesso à água”

Aquisição de veículos

Chama atenção o fato de que o segundo montante mais alto do recurso recebido do governo federal para o combate à covid-19 entre os povos indígenas foi empenhado pela Funai na aquisição de veículos.

Ao todo, conforme os dados do Siga Brasil, R$ 2,7 milhões de reais oriundos do recurso disponibilizado ao órgão via medida provisória foram destinados à compra de veículos para as coordenações regionais nos estados do Pará, Amazonas, Mato Grosso, Tocantins, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Roraima, Bahia e Acre.

Em abril, o jornal O Estado de São Paulo noticiou a aquisição de oito picapes pela Funai, com preços individuais de R$ 131 e R$ 138 mil. Em nota, a Funai respondeu que os recursos do aporte orçamentário “serão utilizados para diferentes fins”, como a compra emergencial de alimentos, o deslocamento de equipes às Frentes de Proteção das terras indígenas e a “aquisição de veículos e embarcações” para transportar servidores e indígenas até aldeias e unidades de saúde.

Na avaliação de Leila Saraiva, esta medida pode ser entendida como um indício da situação de desmonte vivenciada pelo órgão. “A Funai precisa de pessoal qualificado para que esse recurso chegue na ponta, e também de infraestrutura”, aponta a assessora política do Inesc. “Como a Funai vai circular nas aldeias, se não tem carro? Acho que isso só demonstra que o órgão está sem equipamento de trabalho faz tempo”.

“Temos como desafio não apenas conter o máximo possível a chegada do vírus nas aldeias e comunidades, mas também lidar com as invasões dos territórios, a falta de saneamento, acesso à água. São problemas antigos, mas que nesse momento pioram muito o enfrentamento à covid-19”, diz Dinamã Tuxá, da coordenação executiva da Apib.

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