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Presidente do Cimi denuncia violações de direitos dos povos indígenas na Assembleia Geral da CNBB

Dom Roque Paloschi, presidente do Cimi, fala durante Assembleia Geral da CNBB em Aparecida (SP). Foto: divulgação

Dom Roque Paloschi, presidente do Cimi, fala durante Assembleia Geral da CNBB em Aparecida (SP). Foto: divulgação

Ascom/Cimi

“O ano 2018 apresenta-se como extremamente perigoso e desafiador para os povos indígenas no Brasil”, denunciou o presidente do Cimi e arcebispo de Porto Velho (RO), Dom Roque Paloschi, durante sua participação na 56ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

A Assembleia Geral ocorreu em Aparecida (SP), entre 11 e 20 de abril, e Dom Roque fez seu pronunciamento na tarde desta quinta-feira, 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas, em sintonia com a delegação brasileira que se encontrava no mesmo momento em Nova York, participando da 17ª Sessão do Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas.

Citando casos de violência que marcaram o início do ano e os retrocessos institucionais que miram nos direitos dos povos indígenas, Dom Roque afirmou que “são muitas as iniciativas que causam sérios prejuízos e ameaçam fortemente a Vida e o futuro dos povos originários do Brasil”.

O arcebispo mencionou ameaças que rondam os direitos indígenas nos três poderes da República: a negativa do acesso à Justiça e a aplicação do marco temporal, em setores do Judiciário; o Parecer Antidemarcação da Advocacia-Geral da União e a paralisação das demarcações, no Executivo; e a tentativa de enfraquecer a legislação que protege as terras indígenas, no poder Legislativo.

“Afora as inciativas de mudança do marco legal relativo aos povos indígenas, parece-nos evidente que faz parte da estratégia do agronegócio e seus representantes locais a promoção, de fato e de forma ilegal, de uma nova fase de esbulho territorial contra os povos”

“Estão sendo alastradas as práticas de loteamento, apossamento e exploração, por não-índios, de terras indígenas devidamente registradas em nome da União e que estavam na posse pacífica dos povos”, afirmou o presidente do Cimi, fazendo referência ao caso das invasões à terra indígena Karipuna [1], em Rondônia.

Para Dom Roque, estas práticas podem ser agravadas pela omissão e pela conivência do governo federal, que segue inerte, apesar das inúmeras denúncias.

“Como resistência às políticas genocidas, os povos indígenas se organizam e tecem estratégias”, afirmou, lembrando que a próxima edição do Acampamento Terra Livre, que marca anualmente essa grande articulação dos povos e organizações indígenas de todo o Brasil, inicia na próxima semana, no dia 23 de abril.

A criminalização contra lideranças indígenas e seus aliados, que chegou a seu ápice, em 2017, com a CPI da Funai e do Incra, conduzida por ruralistas, também foi elencada como uma preocupação, assim como a situação dos povos isolados [1], que “são os que estão sob risco em grau mais elevado, por serem os mais vulneráveis”.

“No dia em que se recorda o Dia do Índio, peço que nos somemos todos às iniciativas e às demandas dos povos indígenas para que tenham Vida e Vida Plena”, conclamou dom Roque Paloschi. Na semana anterior, ele havia entregue ao Papa Francisco [2] o relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2016, no Vaticano, durante reunião preparatório para o Sínodo da Amazônia.

Leia abaixo a íntegra fala do presidente do Cimi na 56ª Assembleia Geral da CNBB [3]:

 

EM DEFESA DA VIDA DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

Eu vim para que todos tenham Vida
 e tenham Vida Plenamente (Jo 10, 10)

O ano 2018 apresenta-se como extremamente perigoso e desafiador para os povos indígenas no Brasil. Muitos são os fatos concretos de nossa realidade que, infelizmente, nos levam a esta conclusão. Quatro deles são emblemáticos. São eles: o assassinato do professor Marcondes Namblá Xokleng [4], no estado de Santa Catarina, a pauladas, na virada do ano; o assassinato, a pedradas, do também professor Daniel Kabinxana Tapirapé [5], no estado do Mato Grosso, ocorrido durante o mês de janeiro; a queima de uma base de proteção pertencente ao Estado brasileiro localizada na terra indígena Karipuna, em Rondônia, em fevereiro; e o despejo extrajudicial com práticas de tortura contra famílias do povo Kaingang [6], pela polícia militar do Rio Grande do Sul, também em fevereiro. Estes fatos dão mostras inequívocas de que o patamar de violências e violações contra os povos, seus membros e seus direitos, alcançou um nível de envergadura insuportável no país.

Embora geograficamente distantes uns dos outros, os casos acima referidos estão intimamente ligados ao mesmo fio condutor das ações anti-indígenas em curso: a implementação de uma estratégia capitaneada pela bancada ruralista no Congresso Nacional que busca retroceder nos direitos constitucionais dos povos. Tais setores se apossaram e dominam poderes do Estado brasileiro, impondo interesses privados sempre mais privilegiados e protegidos. A bancada ruralista exerce tamanha influência em nosso país que nos últimos dias exigiu a exoneração do presidente da Fundação Nacional do Índio.

O Estado brasileiro parece tomado pelos interesses de grandes corporações privadas, e age no sentido de agravar ainda mais as violações. São muitas as iniciativas que ameaçam a Vida e o futuro dos povos originários do Brasil

As várias ações que compõe esta estratégia, de modo particular os recorrentes discursos de incitação ao ódio, tem provocado uma espiral de violações que chega, neste ano de 2018, na fase de uma verdadeira barbárie contra os povos. Em 2016 foram assassinados 56 indígenas; outras 23 tentativas de assassinato; 10 ameaças de morte; 11 lesões corporais e 17 casos de racismo e discriminação étnico cultural. Outro dado alarmante é o de suicídio, que chegou em 2016 a 106 casos. Foram, ainda 735 casos de mortes na infância, grande maioria causada por falta de assistência governamental e desnutrição grave.

O Estado brasileiro, por sua vez, parece tomado pelos interesses de grandes corporações privadas, e age no sentido de agravar ainda mais as violações acima referidas. São muitas as iniciativas que causam sérios prejuízos e ameaçam fortemente a Vida e o futuro dos povos originários do Brasil. Neste sentido, muito pontualmente, destacamos:

Do poder Executivo: o já denominado pelos indígenas como Parecer Anti-demarcação 001/2017, da Advocacia-Geral da União/Temer; a paralização dos procedimentos de demarcação das terras indígenas; o estrangulamento orçamentário, aprofundado pela Emenda Constitucional 95, que congelou o orçamento e a instrumentalização política da Fundação Nacional do Índio (Funai) aos interesses do fundamentalismo religioso e do agronegócio.

 Do Legislativo: a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000 que busca alterar o processo de demarcação em prejuízo dos povos; o Projeto de Lei 3729/2004 que estabelece mudanças na lei ambiental; o Projeto de Lei 1610/1996, que legaliza a exploração mineral em terras indígenas. Um levantamento realizado Cimi identificou que há, hoje, 33 proposições anti-indígenas em tramitação no Congresso e no Senado. Somadas às propostas apensadas por tratarem de temas semelhantes, ultrapassam uma centena. Em sua maioria, são propostas feitas por ruralistas e pretende alterar critérios para demarcação ou liberar exploração de recursos em terras indígenas.

Do Judiciário: a negativa do acesso à justiça aos povos por parte de alguns Ministros; a sombra do Marco Temporal; e as recorrentes decisões de reintegrações de posse e de anulação de procedimentos de demarcação, estas últimas tomadas, principalmente, nas primeiras instâncias.

Afora as inciativas de mudança do marco legal relativo aos povos indígenas, parece-nos evidente que faz parte da estratégia do agronegócio e seus representantes locais a promoção, de fato e de forma ilegal, de uma nova fase de esbulho territorial contra os povos. Estão sendo alastradas as práticas de loteamento, apossamento e exploração, por não-índios, de terras indígenas devidamente registradas em nome da União e que estavam na posse pacífica dos povos. O Caso da terra indígena do povo Karipuna, no estado de Rondônia, é exemplar neste sentido.

A omissão e a conivência do governo federal, observadas até o presente momento, fazem aumentar ainda mais o perigo de que ocorra um enraizamento e um alastramento dessas práticas ilegais contra os povos noutras unidades federativas. Como resistência as políticas genocidas, os povos indígenas se organizam e tecem estratégias. Um dos grandes momentos nesta articulação é o Acampamento Terra Livre, que reúne lideranças dos povos e organizações indígenas de todas as regiões do Brasil para discutir e se posicionar sobre a violação dos direitos constitucionais e originários dos povos indígenas e das políticas anti-indígenas do Estado brasileiro. Inclusive, o evento acontecerá na próxima semana, de 22 a 27 de abril, em Brasília. Na edição passada, aproximadamente 4 mil indígenas estiveram presente.

O agravamento dos processos de criminalização contra lideranças indígenas e seus aliados também nos preocupa sobremaneira. Injustos, parciais e desprovidos de fundamento na realidade dos fatos, ‘indiciamentos’ por parte da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai/Incra, alcançaram mais de uma centena de pessoas, dentre as quais, lideranças indígenas, servidores públicos, membros da academia como antropólogos e também missionários católicos membros do Cimi. Não por acaso, tal CPI foi proposta, conduzida, dirigida e relatada por deputados que fazem parte da bancada ruralista na Câmara dos Deputados.

Nesse cenário, os povos indígenas isolados são os que estão sob risco em grau mais elevado. Isso por serem os mais vulneráveis. Podem ser vítimas de massacres e dizimações a qualquer momento. Denúncias sobre episódios neste sentido já estão vindo a público sem que o Estado brasileiro aja devidamente.

O Cimi, através dos seus regionais e do trabalho de missionárias e missionários, mapeia as violências sofridas pelos povos indígenas. Anualmente, sistematizam-se essas informações que são analisadas e publicadas no Relatório de Violência contra Povos Indígenas no Brasil [7], um importante instrumento utilizado na defesa dos povos e de seus direitos. Os dados do Relatório de 2016 evidencia que houve um aumento de alguns dos mais significativos tipos de violência e violação de direitos, como mortalidade na infância, suicídio, assassinato e omissão e morosidade na regularização das terras tradicionais. Ainda, a partir de 2017, o Cimi passou a alimentar com os dados de assassinatos de indígenas a plataforma Caci [8], palavra que, em Guarani, significa “dor”, e que serve também como sigla para Cartografia de Ataques Contra Indígenas. A Caci georreferencia dados de assassinatos de indígenas sistematizados a partir dos relatórios do Cimi e da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

O Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil apresenta também um resumo da situação geral das terras indígenas no Brasil e uma extensa tabela que apresenta esses 836 territórios não demarcados. De acordo com a Constituição Federal, todas as terras indígenas deveriam ter sido demarcadas até 1993, cinco anos após a sua promulgação, realizada no dia 5 de outubro de 1988. Ou seja, a dívida histórica recente do Estado brasileiro para com seus povos originários completa 24 anos.

A Boa Nova de Jesus convida a cada um de nós a nos somarmos na defesa da Vida dos povos indígenas. Os povos têm feito a sua parte, razão pela qual ao menos algumas iniciativas anti-indígenas têm sido barradas ou seus efeitos postergados

Mesmo num contexto caracterizado pelo crescimento exponencial das ameaças aos direitos e à vida de lideranças indígenas e agentes indigenistas, fagulhas de justiça se estabelece em memória aos mártires que ousam trabalhar pelo Reino de Deus. No dia 30 de novembro de 2017 um júri popular condenou a 14 anos e três meses de prisão [9] o acusado pelo agenciamento dos pistoleiros que mataram o missionário jesuíta e membro do Cimi, irmão Vicente Cañas, em 1987. A condenação em questão serve como uma luz a mostrar que o caminho da impunidade pode ter um limite. Que a vida e o martírio de Vicente Cañas continue servindo como inspiração à missão entusiasmada e comprometida com os projetos de futuro, com o Reino de Deus e com a vida dos povos originários em nosso país.

Condizente com o magistério latino-americano pós-conciliar, que a assume a certeza de que missão não pode servir a dois senhores, muitos missionários e missionárias foram perseguidos e tiveram sangue derramado nas mais longínquas periferias. Como outro exemplo de mártires da causa indígena temos o padre Rodolfo Lunkenbein e seu amigo indígena Simão Bororo. Foram figuras a serviço de virtudes maiores como justiça, solidariedade, tolerância, simplicidade e despojamento em prol da vida ameaçada dos povos indígenas. Por não caber em sistemas uniformizados de competição e crescimento que visam lucro e poder, a causa indígena é um sinal de contradição e a história dos seus defensores é marcada por assassinatos ou, recentemente, por CPIs. Em julho de 1976, o missionário alemão Rodolfo Lunkenbein e o líder indígena Simão Bororo foram assassinados por ex-moradores retirados da área onde se demarcou a terra indígena de Meruri, próximo de Barra do Garças. Em janeiro deste ano iniciou oficialmente em Meruri o Processo Diocesano sobre o martírio dos Servos de Deus. Ao fazer memória de seus martírios, agradecemos os corações missionários que são força profética do Evangelho na promoção da justiça e da solidariedade.

A Boa Nova de Jesus convida a cada um de nós, Irmãos no Episcopado, a nos somarmos na defesa da Vida dos povos indígenas em nosso país. Podemos testemunhar que os povos têm feito a sua parte, razão pela qual ao menos algumas iniciativas anti-indígenas têm sido barradas ou seus efeitos postergados.

No dia em que se recorda o Dia do Índio, peço que nos somemos todos às iniciativas e às demandas dos povos indígenas para que tenham Vida e Vida Plena. Dentre outras: nos unamos pela revogação do Parecer anti-demarcação 001/2017 da AGU/Temer [10]; a continuidade regular dos processos de demarcação das terras; o impedimento da aprovação da PEC 215/2000, pelo fim dos despejos judiciais e extrajudiciais, do enraizamento e do alastramento da posse e exploração ilegal das terras indígenas já regularizadas, o alcance do acesso à justiça e pelo fim da ameaça aos povos representada na tese do Marco Temporal.

Justiça, Terra e Paz para os Povos Indígena.

Porto Velho, Páscoa do Senhor,

Dom Roque Paloschi
Arcebispo Metropolitano de Porto Velho e
Presidente do Conselho Indigenista Missionário – Cimi