08/04/2018

Polícia irá despejar acampamentos Guarani e Kaiowá nesta segunda em Caarapó (MS)

Funai já foi notificada de data e hora do despejo. Indígenas afirmam que não sairão e temem um segundo massacre no local onde foi assassinado Clodiodi, em 2016

Indígenas reunidos logo após o massacre de Caarapó, no mesmo local em que estão previstos os despejos desta segunda. Foto: Ruy Sposati/Cimi

Indígenas reunidos no local onde foi morto Clodiodi, logo após o massacre de Caarapó. Foto: Ruy Sposati/Cimi

Por Ruy Sposati e Tiago Miotto/Ascom do Cimi

Dois acampamentos Guarani e Kaiowá poderão ser violentamente despejados pela polícia nesta segunda-feira (9) em Caarapó (MS), no mesmo local onde foi assassinado o indígena Clodiodi Aquile de Souza, em 2016. A Polícia Federal deverá convocar a Polícia Militar para realizar a ação, prevista para iniciar às 6 da manhã.

A informação foi recebida neste sábado (7) pela comunidade, que teme um conflito sem precedentes. “Nós estamos preparados para qualquer coisa”, explica por telefone a liderança Kunumi Apyka’i Rory. “O segundo massacre tem data marcada, porque a comunidade não aceitou recuar. Vamos esperar a polícia”.

Em meio à iminência do despejo, os indígenas aguardam que o Supremo Tribunal Federal (STF) acate os recursos da Fundação Nacional do Índio (Funai), pedindo a suspensão da reintegração de posse das áreas. Cabe à presidenta do STF, Cármen Lúcia, analisar os pedidos.

Brutalidade

“O despejo em Caarapó pode atingir níveis de violência nunca antes visto nestas operações”, avalia o missionario  do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no Mato Grosso do Sul, Flávio Vicente Machado.

“Mais de cinco mil pessoas moram na reserva. Poderá ser um massacre ainda maior que o que matou Clodiodi”, analisa Flávio, relembrando o episódio de junho de 2016, conhecido como o massacre de Caarapó.

Na ocasião, dezenas de fazendeiros e homens armados invadiram um acampamento em caminhonetes e tratores, matando o agente de saúde indígena e deixando mais 20 pessoas feridas, entre crianças, professores e idosos.

Na última semana, a PF enviou de Brasília o delegado Luiz Carlos Porto para tentar convencer os Kaiowá e Guarani a sair das áreas ocupadas. “Tentamos de todas as formas convencer a comunidade a (…) evitar a reintegração com força policial, que é sempre muito traumática”, afirmou o delegado federal em entrevista coletiva.

Segundo o policial – especializado em negociações com indígenas -, “os índios têm um orgulho pela terra e isso dificulta a saída. Eles entendem que a ordem judicial não tem de ser cumprida por estarem nas terras que sempre lhes pertenceram”.

Em outro processo de reintegração de posse em Caarapó em 2017, a PF alertou a Justiça sobre a “probabilidade concreta de mortes” durante a execução do pedido. O ofício da polícia, na época, acabou embasando uma decisão da Justiça Federal de adiar, até então, um dos despejos contra a comunidade.

Manifestação contra despejo no Tekoha Jeroky Guasu, em 2017. Foto: Rafael de Abreu

Manifestação contra despejo no Tekoha Jeroky Guasu, em 2017. Foto: Rafael de Abreu

Polícia

“A situação é muito mais complexa do que ocorreu em Buriti, em 2013”, argumenta Flávio, referindo-se à violenta operação das polícias federal e militar que resultou na morte do indígena  Oziel Terena, também no Mato Grosso do Sul.

Para que a polícia tenha acesso às áreas a serem despejadas em Caarapó, explica Fláivo, será preciso atravessar toda a área da reserva de Tey’i kue, onde vivem mais de cinco mil indígenas, o que potencializará os cenários de conflito ao longo da operação.

Mais grave ainda, para ele, é a participação da PM no despejo. “O Mato Grosso de Sul é um estado aparelhado pelo agronegócio, e a PM, muitas vezes, reflete isso. Os indígenas de Caarapó sempre nos contam que, depois do massacre, a atuação da PM piorou muito na área”. Ele aponta, também, a possibilidade de haver “um desejo de vingança por parte da PM” contra os Kaiowá e Guarani acampados nas fazendas.

“Temos que cumprir a ordem judicial e a lei que garante o direito de propriedade, mas a reintegração de posse não adianta porque as ocupações vão continuar. Só existe uma solução: é demarcar ou demarcar”, afirmou o delegado da PF Luiz Carlos Porto.

Judicialização

As duas áreas com ordem de despejo para esta segunda-feira são reivindicadas pelos indígenas como seus antigos tekoha, territórios originários dos Kaiowá e Guarani que foram transformados em fazendas ao longo do século 20.

Parte da área ocupada já está em processo de demaração – a Terra Indígena (TI) Dourados-Amambaipegua I, que faz limite com a reserva Tey’i kue, e cujo relatório de identificação e delimitação foi publicado em 2016.

Apesar disso, o governo não deu continuidade à demarcação, e um emaranhado de processos judiciais de proprietários rurais contra os indígenas surgiu. São ao menos dezoito ações de reintegração de posse e interditos proibitórios que estão em curso na Justiça Federal de Dourados contra a comunidade indígena de Caarapó.

Um dos acampamentos com despejo marcado, o tekoha Jeroky Guasu, está dentro da TI. O outro, o tekoha Guapo’y, é reivindicado pelos indígenas como parte de seu território tradicional e teve o despejo determinado por uma decisão liminar do Tribunal Regional Federal da Terceira Região (TRF-3). No caso de Jeroky Guasu, o despejo foi determinado por uma sentença da 1ª Vara da Justiça Federal de Dourados, depois de uma liminar ter sido suspensa pelo STF no início de 2017.

Além das duas áreas citadas, também a aldeia Pindo Roky – outra área dentro da mesma TI – tem uma ordem de despejo, e pode ser cumprida a qualquer momento. Em 2013, o local foi ocupado pelos Kaiowá e Guarani, após um indígena de 14 anos ter sido assassinado com um tiro na cabeça pelo proprietário da área por pescar no açude da fazenda. Apesar de ter admitido o crime, o fazendeiro não foi condenado.

Crise humanitária

Para o agente do Cimi, a paralisação da demarcação de Dourados-Amambaipegua I é o principal motivo da violência. “O que existe ali na reserva é uma crise humanitária, que obriga estas pessoas a arriscarem suas vidas ocupando fazendas, uma vez que o governo paralisou as demarcações”, afirma Flávio Vicente Machado. “As retomadas acabam sendo a única medida destas comunidades”

O delegado da PF, em sua declaração à imprensa, manifestou uma posição semelhante.

“A comunidade não é composta de criminosos e sim de trabalhadores que lutam por seus direitos. Temos que cumprir a ordem judicial e a lei que garante o direito de propriedade, mas a reintegração de posse não adianta porque as ocupações vão continuar. Só existe uma solução: é demarcar ou demarcar”, afirmou Luiz Carlos Porto.

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