09/12/2025

O julgamento dos direitos dos povos indígenas pelo STF e a vedação de retrocesso

Direitos constitucionais indígenas já reconhecidos como cláusula pétrea retornam à pauta no Supremo e no Senado

Mobilização nacional dos povos indígenas denuncia o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 717/2024 e a lei 14.701/2023, Lei do Marco Temporal. Foto: Adi Spezia / Cimi

Mobilização nacional dos povos indígenas denuncia o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 717/2024 e a lei 14.701/2023, Lei do Marco Temporal. Foto: Adi Spezia / Cimi

Por Paloma Gomes e Rafael Modesto, assessores jurídicos do Cimi (artigo publicado no portal Jota)

Retorna ao Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento de temas relacionados aos direitos possessórios dos povos indígenas que já foram enfrentados pela Corte em julgamento dotado de repercussão geral, em setembro de 2023, no RE 1017365, cujas teses foram fixadas no Tema 1031.

Agora, contudo, o tribunal analisará a constitucionalidade da Lei 14.701/2023, promulgada pelo Congresso Nacional em oposição à deliberação da corte, por meio do julgamento conjunto da ação declaratória de constitucionalidade 87 e das ações diretas de inconstitucionalidade 7582, 7583 e 7586.

Previsto para se iniciar na quarta-feira o julgamento em questão está envolto em contradições, seja pela tentativa de utilização de métodos conciliatórios em ações de controle de constitucionalidade que envolvem direitos indisponíveis, seja pela desconsideração da oposição manifestada pela organização indígena autora de uma das ações, seja por ter sido considerado o julgamento de matéria tão sensível, no plenário virtual, o que impediria o acompanhamento dos debates pelos povos indígenas, principais afetados pela referida lei.

Contudo, após pedido dos povos indígenas e seus aliados, o relator das ações, ministro Gilmar Mendes, cancelou o julgamento virtual e em seguida o processo foi pautado no plenário físico, o que permitirá não apenas aos povos indígenas, mas à sociedade em geral conhecer as posições dos ministros e assistir em tempo real as discussões dos magistrados.

É importante lembrar que a corte debateu profundamente questões que foram posteriormente inseridas na lei e que não houve por parte do Congresso Nacional a apresentação de novos argumentos

Concomitante a isso, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), agendou a análise em plenário do Projeto de Emenda à Constituição Federal que define o marco temporal como critério para a demarcação de terras indígenas, a PEC 48.

É importante lembrar que a corte debateu profundamente questões que foram posteriormente inseridas na lei e que não houve por parte do Congresso Nacional a apresentação de novos argumentos a justificar a alteração de um posicionamento construído a menos de dois anos pela STF.

Estamos nos referindo à já derrotada tese do marco temporal, à vedação de reestudo sobre limites de terras já demarcadas, ao usufruto exclusivo dos povos indígenas e da possibilidade de indenização por erro dos estados federados na titulação de áreas a terceiros sobre terras indígenas.

Além da clara interpretação do Supremo quanto a estes pontos, o plenário do STF ainda reconheceu por 9 votos a 2 que o que previsto no art. 231 da Constituição Federal, são direitos fundamentais, insuscetíveis de disponibilidade e de mutabilidade constitucional por conveniência do legislador ordinário.

Tais questões foram maturadas pela corte na última década, e causaria surpresa para quem acompanha o tema uma mudança hermenêutica constitucional no que já foi fixado – ademais de que o STF reconheceu o direito constitucional dos povos indígenas como verdadeiras cláusulas pétreas e, portanto, insuscetíveis de mudança legislativa.

Os efeitos da vigência da Lei 14.701/23 apontam que ela ao invés de tornar mais efetivo o mandamento constitucional que determina a demarcação e a proteção das terras de posse tradicional indígena pela União, a norma dificulta ainda mais o procedimento demarcatório – que já se apresenta como assaz complexo e rigoroso.

O processo de demarcação é regido há quase 30 anos pelo Decreto 1.775/1996 e tem como condutora dos trabalhos a ciência antropológica, que conta métodos e instrumentos científicos próprios. O processo de demarcação ainda conta com o aporte de profissionais de outras ciências, como historiadores, geógrafos, engenheiros ambientais, agrônomos, para elaboração dos estudos sobre as áreas reivindicadas.

O decreto 1775/96 foi submetido por diversas vezes ao escrutínio do Supremo, que conta com um conjunto de precedentes que reconhece que o procedimento ali estabelecido assegura a ampla defesa e o contraditório não apenas aos particulares, como também aos estados e municípios.

Passados 37 anos da promulgação da Constituição, o estado brasileiro encontra-se em mora com os povos indígenas

Além disso, não há confronto entre o Decreto e o que estabelecido no texto constitucional. Ademais, o Congresso, por meio de Lei 14.701/2023, desprovido de estudos científicos sobre os impactos decorrentes de eventuais mudanças no procedimento, sejam eles financeiros, administrativos sociais ou culturais, impõe mudanças muito significativas no rito demarcatório em claro confronto ao que estabelecido na Carta de 1988.

É possível constatar os efeitos absolutamente danosos da nova lei. Como exemplo, no ano de 2024, período de sua vigência, a violação de direitos dos povos indígenas se deu em maior proporção nos territórios que aguardam a conclusão dos processos demarcatórios. Segundo dados do Relatório de Violências do Conselho Indigenista Missionário, “(…) aproximadamente dois terços (78) das terras e territórios indígenas que registraram conflitos relativos a direitos territoriais em 2024 não estão regularizados. Essas áreas concentraram 101 dos 154 casos registrados pelo Cimi nesta categoria em 2024”[1].

Em informações obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública reconhecem o impacto da Lei 14.701/2023 no procedimento demarcatório e a dificuldade da administração pública em dar cumprimento às novas exigências[2].

A Constituição Federal dispõe de instrumentos de autoproteção (…) compete à corte sua guarda e proteção e ela não vai se desincumbir da sua tarefa institucional

Outros aspectos importantes e que ajudam a delimitar a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, são a clara ofensa aos princípios da duração razoável do processo e da celeridade processual, a violação ao princípio da vedação do retrocesso em matéria de direitos fundamentais e a impossibilidade de alteração de cláusula pétrea da Constituição. Por outro lado, como já dito, a Suprema Corte já avançou no debate no tema 1031 em setembro de 2023 e afastou por inconstitucionalidade as teses anti-indígenas regulamentados pela lei.

Depois, passados 37 anos da promulgação da Constituição, o estado brasileiro encontra-se em mora com os povos indígenas. Assim, na medida em que uma lei ordinária impõe dificuldades para o cumprimento do texto constitucional, notadamente ao que previsto no seu art. 231, por certo ela carece de ser declarada imediatamente inconstitucional.

Importante lembrar que o STF reconheceu no acórdão do RE 1017365 que são direitos fundamentais o que previsto no art. 231, que além de dotado de imutabilidade, por ser uma cláusula pétrea, não pode ser submetido a retrocessos ou mesmo negociados.

A tradição constitucional no Brasil conta com um conjunto de precedentes que vedam retrocessos em matéria de direitos humanos e fundamentais

Vejamos o acórdão do ARE 639.337 que dispõe sobre o princípio da vedação do retrocesso:

Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados. (ARE 639337 AgR, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23-08-2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125).

Concluímos, portanto, que o STF não permitirá tamanho retrocesso aos direitos indígenas, mesmo diante de severas ameaças do legislativo, o que tem sido recorrente na atualidade. Uma, porque a Constituição Federal dispõe de instrumentos de autoproteção (art. 60, § 4º), e, outra, porque compete à corte sua guarda e proteção e ela não vai se desincumbir da sua tarefa institucional.

Neste último caso, a tradição constitucional no Brasil conta com um conjunto de precedentes que vedam retrocessos em matéria de direitos humanos e fundamentais, como é o caso do direito dos povos indígenas, bem como tem assegurado validade irrestrita às cláusulas pétreas da Constituição.

 

[1] Disponível em: <https://cimi.org.br/2025/07/relatorioviolencia2024/ >. Acesso em: 18 dez. 2025

[2] GOMES, P.; SANTOS, R. M. . O ano em que o marco temporal se tornou lei: os impactos da Lei 14.701/2023 na demarcação de terras indígenas. Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil ? Dados de 2024, Brasília, p. 40 – 43, 28 jul. 2025.

 

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