
Festa da Pirapukeka, no Amazonas. Foto: Acervo Equipe Borba Cimi Regional Norte 1
Às margens espelhadas do rio Abacaxis, entre os municípios de Borba e Nova Olinda do Norte, no coração do Amazonas, reside o povo Maraguá. Sua presença é secular, intrinsecamente ligada a essa terra que consideram originária. No entanto, desde o período colonial, a história Maraguá é marcada pela invasão e expulsão do povo do seu território. Com a chegada dos invasores muitos Maraguá foram forçados a se deslocarem para os centros urbanos, jamais, contudo, desligando-se de sua cultura e tradição. A luta pelo reconhecimento e proteção do território é, para os Maraguá, um ato fundamental de sobrevivência e resistência: é lutar pela própria vida, para que sua cultura e modos de vida se fortaleçam no presente e se perpetuem nas próximas gerações.
“A luta pelo reconhecimento e proteção do território é, para os Maraguá, um ato fundamental de sobrevivência e resistência”

Festa da Pirapukeka, no Amazonas. Foto: Acervo Equipe Borba Cimi Regional Norte 1
Essa resistência histórica forjou a identidade Maraguá e, em 2007, o Estado brasileiro por meio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) os reconheceu enquanto povo indígena. Apesar da complexa convivência passada com o povo Sateré Mawé (que levou à denominação inicial de Terra Indígena Maraguá Mawé), o povo se autodeclara Maraguá e reivindica o nome da Terra Indígena de Maraguá-Pajy, que significa, orgulhosamente, “o país dos Maraguá”.
A luta do povo Maraguá na defesa do seu território e afirmação étnica ganhou um novo e decisivo capítulo. Passados quase 20 anos desse reconhecimento, somente agora, em novembro de 2025, a luta Maraguá alcançou um palco de visibilidade mundial, durante a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30 [1]). O território recebeu a Portaria de Criação de Grupo de Trabalho (GT) 1.240 de 1611/2025 [2], dando um passo oficial e concreto para a continuidade do processo de demarcação.
“A luta do povo Maraguá na defesa do seu território e afirmação étnica ganhou um novo e decisivo capítulo”

Festa da Pirapukeka, no Amazonas. Foto: Acervo Equipe Borba Cimi Regional Norte 1
Pirapukeka: A Força da Cultura que Conquista o Futuro
A esperança que renasce com o início do processo de demarcação é celebrada na festividade Maraguá. O fortalecimento de seus rituais e tradições é um dos pilares que sustentam a reconquista do território. Seguir fortalecendo a cultura originária, repassá-la às novas gerações, são perspectivas mantidas para enfrentar os desafios e ameaças históricas.
Entre as mais vigorosas manifestações dessa resistência cultural está a Pirapukeka, a festa tradicional do povo Maraguá que dura dois dias e que na língua indígena significa “peixe assado na folha”. Mais que uma celebração, ela é um ato de afirmação à vida, à união e à força inabalável do povo. A Pirapukeka é a ancestralidade que permanece como símbolo de resistência, de fortalecimento, luta e defesa por um território.
“A esperança que renasce com o início do processo de demarcação é celebrada na festividade Maraguá”

Festa da Pirapukeka, no Amazonas. Foto: Acervo Equipe Borba Cimi Regional Norte 1
Este ano, a Festa aconteceu na primeira quinzena de outubro, na aldeia Terra Preta, no território Maraguá-Pajy. Recebendo visitantes de outras comunidades, povos e da cidade, a festa se tornou um ato de visibilidade para a causa indígena. Raquel Mura, jovem comunicadora de Autazes, resumiu com admiração: “É mais que celebração. É resistência viva. É o momento em que o povo repassa saberes, fortalece a cultura e mostra que seguem firmes, com as raízes plantadas na terra e o coração na ancestralidade.”
Para a professora e gestora da Escola Indígena Nawa Namywà, Geisiane Matos Reis, a festa “é uma forma de manter a cultura viva, todos os jovens ficam na expectativa da data da Pirapukeca. É um momento de preservar o que temos aqui”.
“É uma forma de manter a cultura viva, todos os jovens ficam na expectativa da data da Pirapukeca. É um momento de preservar o que temos aqui”

Festa da Pirapukeka, no Amazonas. Foto: Acervo Equipe Borba Cimi Regional Norte 1
A Demarcação como Retorno à Vida Plena
Por muito tempo, o povo Maraguá viveu sob o medo de se declarar pertencente à etnia, diante da perseguição e do risco de morte. A Pirapukeka de hoje representa a liberdade e a resistência desse povo que luta para afirmar sua identidade e manter viva a sua espiritualidade. É, portanto, a expressão do orgulho de ser Maraguá.
Jair Maraguá, o Tuxaua Geral, celebra a conquista do início da demarcação, conectando-a diretamente aos surgimentos das primeiras aldeias. “Vivemos aqui em fase de demarcação do nosso território. Estamos muito felizes”, comemora ele, observando que a esperança da demarcação fez com que as famílias que haviam se deslocado para a cidade, fugindo dos invasores e do perigo, começassem a retornar.
“Antes, muitos parentes tinham saído de suas casas por conta das invasões e dos perigos de morte que os invasores ameaçavam. Foram viver na cidade e passaram mal, passaram fome, vivendo mal. Mas, hoje, com a demarcação do território, o povo está voltando para cá e já somos uma população bem grande já. Éramos quatro aldeias, mas aumentamos em seis e hoje somos 10 aldeias. Então, isso é muito bom porque mostra que o nosso povo está voltando ao que era e a população está crescendo. Crianças estão nascendo e crescendo,” afirmou o Tuxaua, destacando que a demarcação não é apenas um papel, mas a garantia de um futuro: “Com a demarcação do território, a gente vai viver em paz no nosso território”, disse esperançoso.
“Vivemos aqui em fase de demarcação do nosso território. Estamos muito felizes”

Festa da Pirapukeka, no Amazonas. Foto: Acervo Equipe Borba Cimi Regional Norte 1
A Origem da Festa: Honrando a Fartura e a Tradição
Para a professora e gestora da Escola Indígena Nawa Namywà, Geisiane Matos Reis, a festa “é uma forma de manter a cultura viva, todos os jovens ficam na expectativa da data da Pirapukeca. É um momento de preservar o que temos aqui”.
A origem da Pirapukeka remonta à fartura sazonal. “Nossos antigos contam que nesse período do ano tem muito aracu, que é um peixe tradicional daqui do rio Abacaxis. Por isso a festa é realizada nesse período. Homens e mulheres pescavam aracu nas pedras do rio. E aí, homens, mulheres e crianças iam para a praia para passar o dia e comer peixe. Divertiam-se com vários tipos de brincadeiras tradicionais disputadas entre os clãs” relatou Geisiane.
“É uma forma de manter a cultura viva, todos os jovens ficam na expectativa da data da Pirapukeca. É um momento de preservar o que temos aqui”

Festa da Pirapukeka, no Amazonas. Foto: Acervo Equipe Borba Cimi Regional Norte 1
A festa que celebrava a pesca, o preparo do peixe e a confraternização na praia com brincadeiras tradicionais disputadas entre os clãs, hoje segue o mesmo espírito. Brincadeiras como arco e flecha, corrida com toras, natação e a tradicional luta Piãguá — ritual da despedida da guerra e da alegria do retorno dos guerreiros — mantêm viva a memória ancestral. A noite é dedicada à contação de histórias dos antigos e à partilha, reforçando a união.
Durante a festa, um dos momentos de maior destaque é a escolha da moça e do moço Maraguá, onde cada jovem representa a sabedoria de seu clã, identificado por um animal da floresta: Yaguareteguá (Gente da Onça), Piraguáguá (Gente do Boto), Çukuyeguá (Gente da Cobra), entre outros. O ápice simbólico deste ano foi a realização de um casamento tradicional Maraguá, um ritual que há muito não era realizado. O Cacique Geral Jair Maraguá, emocionado, conduziu a cerimônia, afirmando que o momento era “cheio de emoção, simbologia, alegria e afirmação da nossa tradição”.
A Festa da Pirapukeca é o reencontro do povo Maraguá com sua história, com a floresta e com a força espiritual que vem de Monan, o Criador e Protetor. É o ato mais potente de que, mesmo diante de anos de luta, a cultura Maraguá não apenas sobrevive, mas se fortalece e se impõe, garantindo que o País dos Maraguá (Maraguá-Pajy) permaneça vivo.