
Com réplicas da Constituição Federal, lideranças indígenas realizam ato em frente ao STF em defesa de seus direitos constitucionais e originários, da demarcação de suas terras e proteção de seus territórios, no marco dos 37 anos da Constituição Federal. Foto: Tiago Miotto/Cimi
Durante a semana em que se completam 37 anos da Constituição Federal, cerca de 40 lideranças Xokleng, Kaingang, Guarani e Kaiowá dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul, estiveram em Brasília realizando atos públicos, vigílias e incidências em defesa de seus direitos constitucionais e originários. A mobilização, realizada entre os dias 30 de setembro e 2 de outubro, culminou com a divulgação de uma carta pública à sociedade brasileira.
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No documento, os povos apontam que a “demora estratégica” do Estado em efetivar as demarcações cria um cenário fértil para a violência, com ameaças constantes, invasões ilegais e assassinatos brutais, marcados por extrema crueldade, intimidações e a tentativa de silenciar lideranças. “A solução para a superação da violência que vivenciamos cotidianamente passa necessariamente pela demarcação e proteção de nossas terras, nos exatos termos da Constituição Federal”, afirmam as lideranças.
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Eles lembram ainda que, mesmo após o Supremo Tribunal Federal (STF) declarar a tese do marco temporal inconstitucional em 2023, decisões políticas e judiciais têm paralisado processos de demarcação, mantendo os povos à espera de proteção de suas terras e de seus direitos fundamentais. “Estamos na iminência de completar 37 anos da promulgação da nossa Constituição e as instituições brasileiras carregam a mácula de não demarcar e não proteger as terras indígenas, os costumes, as línguas, organização social, crenças e tradições de nossos povos”, denuncia o documento.
“Seguiremos em defesa de nossos territórios e em defesa das nossas vidas, pois nossos direitos não se negociam”

Lideranças indígenas participam de audiência no STF como parte da mobilização em Brasília, reivindicando a demarcação e proteção de suas terras, no marco dos 37 anos da Constituição Federal. Foto: Hellen Loures/Cimi
A carta ainda elenca sete reivindicações centrais, entre elas: a análise da inconstitucionalidade da Lei 14.701 [3] e a conclusão do julgamento do Tema 1031, de repercussão geral, pelo STF; a continuidade dos processos de demarcação; a desintrusão de terras invadidas; e a responsabilização de envolvidos em ataques contra indígenas. O texto conclui com uma convocação à mobilização: “Até que isso ocorra, seguiremos em defesa de nossos territórios e em defesa das nossas vidas, pois nossos direitos não se negociam. Demarcação, já!”.
CARTA PÚBLICA
Nós, lideranças dos povos Xokleng, Kaingang, Guarani e Kaiowá dos estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná e Mato Grosso do Sul, convocamos a todos e todas que se levantem em defesa da Constituição Federal. Não há, neste momento histórico, outro caminho que não seja o cumprimento do que foi conquistado por nós, povos indígenas, durante a Constituinte.
A solução para a superação da violência que vivenciamos cotidianamente, como ocorre neste exato momento com Seu Tito e Dona Miguela, anciões centenários Guarani Kaiowá, que aguardam a regularização de sua Tekoha, Guyraroka, no Mato Grosso do Sul, passa necessariamente pela demarcação e proteção de nossas terras, nos exatos termos da Constituição Federal (art. 231 e 232).
Estamos na iminência de completar 37 anos da promulgação da nossa Constituição e as instituições brasileiras carregam a mácula de não demarcar e não proteger as terras indígenas, os costumes, as línguas, organização social, crenças e tradições de nossos povos. Citamos apenas alguns exemplos, dentre centenas:
Comunidades indígenas Avá-Guarani, localizadas nos municípios de Guaíra e Terra Roxa, na região oeste do Paraná, sofrem ameaças constantes por sua atuação em defesa da terra, da cultura e dos direitos fundamentais de seu povo. As inúmeras denúncias e pedidos de resolução às autoridades competentes não foram suficientes para evitar assassinatos que vitimam o nosso povo. Em junho deste ano, um jovem de 23 anos, da comunidade Yvyju Avary, na região Oeste do Paraná, foi encontrado decapitado. Ao lado do corpo, um bilhete contendo ameaças a toda comunidade indígena.
Também em 2025, por meio de decisões judiciais, foram suspensos os efeitos do decreto presidencial que reconheceu a posse tradicional dos indígenas Kaingang sobre a Terra Indígena (TI) Toldo Imbu, em Abelardo Luz (SC), assim como foi paralisada a finalização da demarcação da terra indígena Rio dos Índios, de posse tradicional do povo Kaingang, no Rio Grande do Sul, que já conta com decreto homologatório.
Ainda em 2025, o Senado aprovou o PDL 717/2024, que, com fundamento na Lei 14.701/2023, tem três objetivos principais: sustar os decretos homologatórios das TIs Morro dos Cavalos, do povo Guarani Mbya, e Toldo Imbu, do povo Kaingang, ambas em Santa Catarina; e, ainda mais grave, sustar o artigo 2º do decreto 1775/1996, que regulamenta o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas. Embora ainda não tenha sido finalizada a tramitação legislativa, o Congresso Nacional sinaliza mais uma vez que não reconhece os direitos originários e constitucionais dos povos indígenas.
Em 2 de abril de 2024, o Estado brasileiro reconheceu publicamente as violações cometidas no período da Ditadura Militar (1946 a 1988) contra o povo Guarani Kaiowá da Terra Indígena (TI) Guyraroká, situada no município de Caarapó, em Mato Grosso do Sul, porém até hoje o território não foi demarcado e a comunidade está neste momento sendo atacada por policiais e jagunços.
Em 27 de setembro de 2023, ao reconhecer todas as violações de direitos a que foram submetidos o Povo Xokleng e a validade da Portaria Declaratória da TI Ibirama-La Klãnõ, o Supremo Tribunal Federal não apenas deu provimento ao recurso extraordinário como fixou tese com sua interpretação do artigo 231 da Constituição Federal, que trata de nossos direitos.
Na ocasião, rechaçou o marco temporal, firmou o direito originário dos povos indígenas e reconheceu que o artigo 231 trata de direitos fundamentais, ou seja, direitos dotados de imutabilidade. Todavia, até o momento não houve a conclusão da demarcação da TI do Povo Xokleng, como também o marco temporal tem atravessado a política indigenista, em virtude da Lei 14.701/2023, que se encontra em vigor há quase dois anos, sem pronunciamento da Corte sobre sua (in)constitucionalidade.
Neste contexto de tantas contradições e de uma demora estratégica na resolução da pauta indígena no Brasil, o campo se encontra fértil para soluções e arranjos mal-engendrados. Sobressaem propostas que se apresentam como novas saídas para a pacificação social, mas que, na verdade, ocultam interesses econômicos predatórios e interesses políticos escusos.
Os que atacaram a democracia brasileira, financiando atos contra o Supremo Tribunal Federal, são os mesmos que avançam sobre os nossos territórios, matam nossos parentes e fazem lobby nos corredores de Brasília para negociar nossos direitos.
Nesse sentido, não há outro caminho que não o de defender que a demarcação e proteção das terras indígenas se dê nos termos da Constituição Federal (art. 231 e 232) e o de exigir que as instituições cumpram com seus deveres constitucionais. Além disso, para superação deste momento, entendemos que se faz necessário:
- O julgamento do RE 1017365 (Tema 1031) para análise dos embargos de declaração, sem retrocesso ao que já definido pela Suprema Corte
- O julgamento da (in)constitucionalidade da Lei 14.701/2023 pelo STF
- A continuidade da demarcação das terras indígenas
- A proteção efetiva dos territórios ainda não demarcados e dos povos indígenas que aguardam a conclusão destas demarcações
- A desintrusão das terras indígenas invadidas por terceiros
- A identificação e a responsabilização de todos os envolvidos nos ataques contra os povos indígenas
- E, por fim, para que tenhamos paz em nossos territórios, pedimos que sejam empreendidos todos os esforços necessários para a conclusão das demarcações das TIs: Ibirama-La Klãnõ, do povo Xokleng, Morro dos Cavalos, do povo Guarani Mbya, e Toldo Imbu, do povo Kaingang, todas em Santa Catarina; Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, do povo Avá-Guarani, localizada no estado do Paraná; Rio dos Índios, de posse tradicional do povo Kaingang, no Rio Grande do Sul; e, de Guyraroka, do povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.
Até que isso ocorra, seguiremos mobilizados em defesa de nossos territórios e em defesa das nossas vidas, pois nossos direitos não se negociam.
Demarcação, já!
Brasília, DF, 2 de outubro de 2025.
