
IV Marcha das Mulheres Indígenas, dia 7 de agosto de 2025, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília (DF). Foto: Hellen Loures/Cimi
Diante do avanço das forças econômicas e políticas que devastam, e que insiste em reduzir vidas a números, as mulheres indígenas permanecem sustentando a defesa de seus territórios e o direito de existir com dignidade e autonomia. Em cada retomada, assembleia e mobilização, carregam o peso de um país que insiste em violar seus corpos e vidas. E, mesmo diante de tanta violência, seguem na certeza de que a terra é viva, que a ancestralidade é força e que o amanhã se constrói agora, mas com raízes profundas e horizontes abertos. Sua luta atravessa fronteiras: do plenário das Nações Unidas às ruas de Brasília, dos rituais nos territórios às denúncias contra as estruturas de poder. São símbolo da resistência; diária, coletiva e vital.
Em Nova Iorque, no dia 14 de julho, a líder indígena exilada, Anexa Alfred Cunningham, do povo Miskitu da Nicarágua, foi eleita presidente do Mecanismo de Peritos sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU (EMRIP, na sigla em inglês), levando ao mundo o eco das vozes das mulheres indígenas que muitos tentam silenciar. Anexa tem longa trajetória na defesa dos direitos dos povos indígenas, tanto no âmbito local quanto internacional e, ao ocupar esse espaço, ela se torna símbolo de resistência e de luta das mulheres indígenas, cuja coragem atravessa fronteiras e deixa marcas na história.
Quando uma mulher indígena chega à Presidência de um órgão subsidiário do Conselho de Direitos Humanos (CDH), o principal órgão intergovernamental que lida com direitos humanos, não é um gesto protocolar; é, antes, um chamado para que os Estados-membros escutem as vozes que denunciam injustiças e clamam por direitos historicamente negados.
“Ocupamos esse território, um espaço ancestral e político na capital do país, para, mais uma vez, fazer com que nossas palavras ecoem como cantos de luta”

IV Marcha das Mulheres Indígenas, dia 7 de agosto de 2025, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília (DF). Foto: Tiago Miotto/Cimi
Essa resistência também pulsou nas ruas de Brasília, quando mais de 5 mil mulheres indígenas, de mais de 100 diferentes povos, representando todos os biomas do país, se mobilizaram e marcharam pelas ruas da Capital Federal e consolidaram, ao Congresso Nacional, uma “Carta dos Corpos-Territórios em Defesa da Vida”, buscando o fortalecimento e o desenvolvimento de políticas públicas diferenciadas em prol dos povos indígenas. “Mulheres-terra, mulheres-raiz, mulheres-água, mulheres-semente, estamos escrevendo mais um capítulo da nossa história coletiva de resistência e esperança. Durante o nosso encontro, ocupamos esse território, um espaço ancestral e político na capital do país, para, mais uma vez, fazer com que nossas palavras ecoem como cantos de luta, de cura e de renascimento. Marchamos! (…) Nossos passos seguem o caminho do direito a ter nossos territórios protegidos, que é também o direito de ter nossos corpos protegidos”, traz a carta final da IV Marcha das Mulheres Indígenas, como um símbolo da força coletiva e da luta cotidiana das mulheres indígenas.
A força da marcha, infelizmente, contrastou com a brutalidade que persiste no cotidiano de muitas mulheres indígenas, evidenciada pelo caso recente do crime contra a indígena Kokama, lançada numa cela com presos homens e submetida, ao lado do filho recém-nascido, à violência sexual durante mais de nove meses pelos agentes do Estado que deveriam mantê-la em segurança em Santo Antônio do Içá, interior do Amazonas. Ela e seu bebê tornaram-se símbolos da negligência estatal, do racismo estrutural, da ineficiência do sistema prisional e da impunidade institucional. E não se trata de um caso isolado: é a repetição de um padrão de violência que atravessa o tempo, a política e o território. No presídio feminino de Vilhena, em Rondônia, mulheres indígenas são alvos de violências que revelam a negação de seus direitos básicos. O caso Kokama expõe como o sistema prisional, longe de garantir justiça, perpetua um ciclo de opressão que afeta de maneira ainda mais brutal aquelas que carregam em si a marca de serem indígenas e mulheres. O cárcere, neste contexto, é uma extensão das violências históricas que expulsam essas mulheres de suas terras, destroem suas comunidades, criminalizam sua resistência e perpetuam a violência sobre seus corpos.
Sem garantia efetiva de integridade física, cultural, espiritual e territorial, qualquer princípio de direito vira letra morta

IV Marcha das Mulheres Indígenas, dia 7 de agosto de 2025, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília (DF). Foto: Tiago Miotto/Cimi
São três frentes que se entrelaçam em suas simbologias e atravessam o tempo e os espaços: o marco da nomeação de Anexa, uma mulher indígena exilada, somado ao fato de que sua trajetória agora acompanha este reconhecimento, evidenciando o quanto a violação de direitos é transnacional; a marcha que reuniu mais de cinco mil mulheres na Capital Federal, revelando mais uma vez ao país que corpo é terra, água e semente – e que a cura da terra depende do respeito aos corpos-territórios; e o caso Kokama, que revela o ponto de fratura do Brasil de que, sem garantia efetiva de integridade física, cultural, espiritual e territorial, qualquer princípio de direito vira letra morta.
Juntas, essas histórias lembram que a resistência da luta das mulheres indígenas segue, “com os pés na terra e os olhos no futuro, reafirmando que nosso corpo é território sagrado — e quando tocam em nós, tocam em toda a Mãe Terra”. Que o Estado caminhe nesse mesmo passo, respeitando a força, a resistência e os territórios das mulheres indígenas, para que a proteção seja tão viva quanto a terra que elas defendem.
