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Mineração e marco temporal: ameaças que consomem os territórios e as vidas indígenas

Seminário debate sobre “Territórios em Risco: os Impactos da Mineração em Terras Indígenas e a Correlação com a Lei 14.701/2023 e a Mesa de Conciliação no STF. Fotos: Adi Spezia/Cimi

Por Assessoria de Comunicação do Cimi – Matéria publicada originalmente na edição 476 do Jornal Porantim [1]

“O Estado brasileiro está assinando o nosso decreto de morte”. A afirmação, feita pela jornalista e cofundadora da Articulação Brasileira de Indígenas Jornalistas (ABRINJOR), Ayla Tapajós, durante o seminário “Territórios em risco”, ecoou entre lideranças, parlamentares, comunicadores e especialistas que se reuniram no dia 10 de junho, em Brasília. O encontro teve como objetivo denunciar os retrocessos em curso contra os direitos territoriais dos povos indígenas, com foco nos impactos da mineração, nas ameaças da Lei 14.701/2023 e nos riscos da tese do marco temporal, que persiste no cenário jurídico mesmo após a declaração de sua inconstitucionalidade.

Organizado pela Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, com apoio de organizações indígenas, indigenistas e ambientalistas, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o evento foi realizado no Anexo IV da Câmara dos Deputados. O seminário também abordou a gravidade do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 717/2024, que busca sustar o artigo 2º do decreto 1775/1996, que regulamenta o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas.

As falas dos participantes denunciaram crimes socioambientais relacionados à mineração em territórios indígenas, os efeitos da nova legislação que institui o marco temporal e os riscos da atuação de grupos armados e econômicos nas terras tradicionais. A primeira mesa de debate teve como foco “Os crimes e violências da mineração em territórios indígenas”.

“Como vamos pensar no nosso futuro, se o rio – que é a nossa vida – está totalmente contaminado? Hoje, a gente enfrenta a Vale dentro do Ministério Público, e a empresa diz que o rio não está contaminado. Mas ele está, sim: pelo garimpo ilegal, pelos fazendeiros. A empresa já matou o nosso rio, e as doenças aumentaram. Fizemos um estudo, junto com pessoas da Universidade Federal: mais de 720 indígenas contaminados por metais pesados. Então, a preocupação é muito grande”, relatou Xawãn Xikrin, da Terra Indígena Xikrin do Cateté, no Pará.

O jornalista Maurício Ângelo, fundador do Observatório da Mineração, lembrou que o problema não é recente: “a situação do garimpo ilegal é histórica, crônica. A tentativa de aprovar a mineração em terras indígenas vem, na verdade, desde os anos 90. São milhares de interesses minerários dentro de terras indígenas em todo o Brasil, sobretudo na Amazônia – tanto de grandes empresas quanto de médias, pequenas e cooperativas – já esperando, justamente, a mudança da lei”.

Ele citou estudos científicos que estimam uma perda de 160 mil km² de floresta na Amazônia – área maior que todo o território da Inglaterra – e um prejuízo anual superior a 5 bilhões de dólares, cerca de 30 bilhões de reais, caso a mineração em terras indígenas seja aprovada no Brasil. “Estamos falando de um desmatamento severo, agudo, crônico, que coloca em risco não só os territórios diretamente impactados, mas toda a sociedade brasileira e mundial, porque sabemos como as terras indígenas são importantíssimas”, afirmou.

O jornalista criticou o uso da transição energética como justificativa para liberar a mineração em territórios indígenas, apontando os interesses econômicos globais que pressionam pela exploração de minerais considerados estratégicos. Citou, entre eles, a indústria de carros elétricos – com destaque para empresas ligadas a bilionários como Elon Musk – e denunciou o alinhamento dessas demandas com articulações da extrema direita internacional. “A transição energética não pode ser usada como argumento para transformar terras indígenas no Brasil em zonas de sacrifício que irão comprometer completamente o clima no planeta e, em última instância, a sobrevivência da humanidade”, afirmou.

“Os empresários brasileiros financiam a morte das populações indígenas: invasão, contaminação por mercúrio”

Seminário debate sobre “Territórios em Risco: os Impactos da Mineração em Terras Indígenas e a Correlação com a Lei 14.701/2023 e a Mesa de Conciliação no STF. Fotos: Adi Spezia/Cimi

A denúncia sobre os impactos da mineração nos territórios indígenas ganhou contornos ainda mais concretos na fala de Junior Hekurari Yanomami, presidente da Urihi Associação Yanomami, ao expor os efeitos diretos da contaminação sobre a saúde dos povos. “Os empresários brasileiros financiam a morte das populações indígenas: invasão, contaminação por mercúrio. Temos 76% da população – mulheres, crianças – contaminadas. E, agora, como é que o Estado brasileiro vai resolver isso?”, questionou.

As consequências da mineração também são sentidas em outros territórios indígenas, como o do povo Mura, no Amazonas. Milena Mura, coordenadora da Organização das Mulheres Indígenas de Autazes, denunciou, por exemplo, o papel da empresa Potássio do Brasil, que iniciou suas atividades na região em 2003 e intensificou a exploração em 2012, cooptando indígenas para atender a interesses externos.

“Nosso povo sofreu a pressão de ser dividido – algo que acontece em vários territórios indígenas. A Potássio do Brasil começou a explorar nossos territórios falando em mineração, mas, na época, não tínhamos o conhecimento do que isso realmente significava. Foi o Conselho Indigenista Missionário que nos mostrou os impactos reais desse projeto, que é, na verdade, um projeto de morte para o nosso povo. Quando a empresa não conseguiu avançar, começou a cooptar lideranças, e essa foi uma das feridas mais profundas que enfrentamos”, revelou.

Milena também reforçou o papel fundamental dos indígenas na defesa da floresta e questionou o real beneficiário do chamado desenvolvimento. “Nós somos os verdadeiros defensores da vida futura, pois somos quem cuida da floresta em pé. Então, pergunto: para quem é esse desenvolvimento, meu povo? O que podemos esperar para o futuro? É doloroso e lamentável ter que deixar nosso território, sofrer ameaças e impactos, e ainda ouvir que, em madrugadas e noites, aprovam leis para matar seres humanos.”

A comunicação popular tem se afirmado como um instrumento construído pelos próprios povos – uma prática viva de enfrentamento que dá visibilidade à luta nos territórios

Seminário debate sobre “Territórios em Risco: os Impactos da Mineração em Terras Indígenas e a Correlação com a Lei 14.701/2023 e a Mesa de Conciliação no STF. Fotos: Adi Spezia/Cimi

Comunicação é resistência

A segunda mesa do seminário, intitulada “Comunicação, Resistência e Liberdade de Expressão”, destacou o papel fundamental da comunicação indígena na resistência e na construção de narrativas próprias. Os participantes abordaram a importância da imprensa na denúncia de violações contra os povos indígenas, os desafios da representatividade na mídia, além dos riscos da desinformação e das ameaças à liberdade de expressão em contextos de conflito territorial.

Em consonância com esses temas, a jornalista Ayla Tapajós, da Articulação Brasileira de Indígenas Jornalistas (ABRINJOR), denunciou a invisibilização dos danos da contaminação por mercúrio nos corpos indígenas, especialmente das mulheres, e reforçou a urgência de que as histórias dos povos sejam contadas por eles mesmos. “A contaminação mercurial tem um impacto silencioso que a gente não vê, que a gente não pega, mas que está dentro dos nossos corpos. A gente se depara com mulheres que não podem mais engravidar, crianças que já nascem com problemas de saúde. Esse problema está acontecendo, e as pessoas estão tratando como se não existisse. Daí vem o meu desejo, enquanto jornalista indígena, de que a nossa história fosse contada a partir de nós, principalmente no campo das denúncias, porque a gente sabe que a grande imprensa não conta a história de forma clara e evidente a partir da perspectiva dos povos indígenas, de como é que a gente é impactado”.

Se, por um lado, a grande imprensa continua ignorando ou distorcendo a realidade dos povos indígenas, como denunciou Ayla Tapajós, por outro, a comunicação popular tem se afirmado como um instrumento construído pelos próprios povos – uma prática viva de enfrentamento que dá visibilidade à luta nos territórios.

Foi o que destacou o jornalista e cofundador da Mídia Indígena, Erisvan Guajajara, ao defender a comunicação como uma das principais estratégias de resistência frente aos retrocessos legislativos e à omissão do Estado. “A gente tem buscado estratégias de comunicação, de narração, de narrativas que possam mostrar para a sociedade a árdua luta dos povos indígenas, enfrentada todos os dias nos territórios. A luta pela terra, a falta de água, de educação, de saúde. Então, são assuntos que a gente precisa abordar junto e usar o que nós temos de mais potente hoje, que é a comunicação”, destacou.

Ele alertou para o avanço de retrocessos no Congresso Nacional, composto majoritariamente por parlamentares anti-indígenas, e afirmou que, diante desse cenário, é preciso recorrer às ferramentas que estão ao alcance dos povos: comunicar com protagonismo e garantir continuidade e escuta. “A gente pode contar as nossas histórias como elas realmente devem ser contadas, com as nossas narrativas, com o nosso protagonismo – e, principalmente, ouvindo os mais velhos”, pontuou.

A jornalista e comunicadora Cristina Serra reforçou a crítica ao papel da grande imprensa, ressaltando que ela não costuma questionar as decisões do Supremo Tribunal Federal que impactam os direitos indígenas. Como exemplo, destacou o grupo de trabalho criado pelo ministro Gilmar Mendes para tratar do marco temporal, mas que representou uma verdadeira tentativa de flexibilizar a Constituição, que é clara na proteção a esses direitos. “Um ministro do próprio Supremo, que é o guardião da Constituição — ou deveria ser — faz esse grupo para tentar um meio-termo impossível entre o que diz a Constituição e o projeto do marco temporal”, afirmou.

Segundo Cristina, diante da incapacidade da grande imprensa de enfrentar esses interesses, a comunicação dos povos indígenas depende essencialmente da força e da mobilização dos próprios povos para denunciar o genocídio em curso no país. “Temos, neste momento, crianças contaminadas no ventre das suas mães pelo mercúrio dos garimpos no território indígena Munduruku, o genocídio dos Guarani e Kaiowá, o genocídio dos Yanomami”, alertou.

As violências contra os povos indígenas estão sendo legitimadas por um conjunto de medidas legislativas e institucionais que se retroalimentam

Seminário debate sobre “Territórios em Risco: os Impactos da Mineração em Terras Indígenas e a Correlação com a Lei 14.701/2023 e a Mesa de Conciliação no STF. Fotos: Adi Spezia/Cimi

Marco temporal x projetos de mineração

Para o coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Ricardo Terena, a correlação entre a Lei 14.701/2023 – que reforça e regulamenta a aplicação da tese do marco temporal – e os projetos de mineração em terras indígenas é clara: as duas abarcam a exploração econômica dentro dos territórios indígenas e intensificam a violência.

No caso da lei, ele explica que ela funciona como um obstáculo legal que legitima invasões, conflitos e impede o avanço na proteção territorial. Ou seja, a legislação trava os processos de demarcação e fomenta a violência contra os povos indígenas. “Temos violências que acontecem no extremo sul da Bahia por uma ausência de demarcação e, quando vamos ao Ministério da Justiça solicitar que seja emitida a portaria declaratória dessas terras indígenas, a justificativa é que não conseguem emitir por conta da Lei 14.701”, explicou.

O coordenador executivo Apib, Dinamam Tuxa, reforçou a denúncia sobre os efeitos concretos da Lei 14.701/2023, destacando seu papel na intensificação dos conflitos socioambientais e no avanço da destruição dos territórios indígenas. Ele questionou os reais interesses por trás da exploração econômica nas terras originárias e apontou diretamente a responsabilidade do Congresso Nacional na violação de direitos constitucionais. “A quem interessa a exploração minerária ou a exploração de qualquer espécie ou de qualquer caráter dentro das terras indígenas? Essa casa aqui, deputada, com todas as vênias e respeito que nós temos, tem sido um cenário, promoveu cenários e está promovendo cenário de muita violação de direitos. E eu estou dizendo direitos constitucionais, cláusulas pétreas, que os senhores e senhoras têm ciência disso”, afirmou.

Segundo Dinamam, a Lei 14.701 tem impulsionado o desmatamento, a contaminação e a violência nos territórios, promovendo o genocídio dos povos indígenas. Ele lembrou que os impactos da mineração já são conhecidos e devastadores, citando os exemplos de Brumadinho, Mariana e o caso Yanomami: “O problema é a atividade econômica em si. Ela é predatória, ela é destrutiva, ela contamina, ela mata. Então, regulamentar não vai solucionar o problema”.

O seminário terminou com uma advertência clara: as violências contra os povos indígenas estão sendo legitimadas por um conjunto de medidas legislativas e institucionais que se retroalimentam. A mineração, amparada por leis como a 14.701 e por articulações políticas no Congresso e no STF, está longe de ser exceção. É política de Estado. E, enquanto isso, rios morrem, comunidades são contaminadas e territórios são transformados em espaços de conflito e morte. A urgência, reafirmaram as vozes presentes, é defender a vida.