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O Legado de Francisco na defesa dos povos indígenas e da Amazônia

Papa Francisco com cocar dado de presente pelos bispos dos regionais Regional Nordeste e Norte 1. Foto: Vatican News

Por Assessoria de Comunicação do Cimi – Matéria publicada originalmente na edição 475 do Jornal Porantim [1]

Iluminado pela luz da Páscoa, o Papa Francisco fez sua passagem. O primeiro pontífice sul-americano e jesuíta da história partiu e deixou um legado profundo na defesa dos povos tradicionais e na preservação da casa comum. Um dos maiores líderes da história recente, Francisco, símbolo de coragem, se destacou por inúmeros feitos que foram uma virada de chave na história da Igreja.

Ele foi o primeiro Papa a convocar um Sínodo voltado exclusivamente à realidade Pan-Amazônica. Nenhum de seus antecessores reuniu bispos, lideranças indígenas e especialistas para escutar os povos da floresta e construir com eles novos caminhos para a Igreja. Ele foi o primeiro pontífice a se dedicar com profundidade e centralidade às questões dos povos indígenas, à ecologia integral e à Amazônia como território sagrado e ameaçado.

Durante a abertura do Sínodo da Amazônia, em janeiro de 2018, Francisco alertou que os povos originários nunca estiveram tão ameaçados em seus territórios como hoje e que a missão da Igreja na Amazônia passa pela escuta desses povos.

O Sínodo se somou a um conjunto de ações do pontífice. A própria escolha do nome Francisco, já evocava o caminho de seu papado, inspirado em São Francisco de Assis, conhecido por sua humildade, dedicação aos pobres e amor pela natureza.

Papa Francisco encontra indígenas em Puerto Maldonado, no Peru. Foto: Vatican News

Sua encíclica Laudato Si’, a primeira encíclica exclusivamente ecológica da Igreja, fez ecoar ainda mais forte a opção franciscana do Pontífice, que deixou registrado seu ensinamento de que não pode haver ecologia sem justiça social. E que cuidar da natureza é também cuidar da humanidade.

O Papa Francisco propunha, como ele mesmo chamava, uma Igreja em Saída, colocando em evidência a presença da Igreja para ouvir e servir. Ele também rompeu paradigmas ao falar da ameaça do extrativismo predatório e pediu que todos os bispos, junto com os povos indígenas, conservassem a riqueza cultural, espiritual e ecológica da Amazônia.

Em 2022, ele nomeou Dom Leonardo Steiner como o primeiro cardeal da região amazônica, um gesto histórico e simbólico de grande relevância para a Igreja Católica e para os povos da floresta. Hoje, o cardeal, que é presidente do Conselho Indigenista Missionário, fortalece a caminhada ao lado dos povos indígenas, garantindo que o gesto de confiança de Francisco, em sua fé encarnada, se concretize na realidade diária desses povos.

Durante sua visita ao Canadá, em 2022, pediu perdão pelos abusos cometidos contra os povos indígenas em instituições ligadas à Igreja e reconheceu que a colonização não terminou e que as mentalidades colonizadoras continuam. Com coragem, Francisco olhou para a história, reconheceu os erros da própria Igreja e indicou a urgência de reparar, proteger os direitos e preservar as culturas indígenas.

No ano seguinte, em 2023, Francisco reforçou esse compromisso com os povos originários ao responder a carta da Aty Guasu – a Grande Assembleia Guarani. Na mensagem, Francisco expressou solidariedade ao sofrimento vivido pelos Guarani e fez votos para que seu clamor seja escutado pelas autoridades competentes.

Papa Francisco com presentes do povo Awajún durante Sínodo da Amazônia. Foto: Miguel Arreategui Ro-driguez/Repam

Francisco era o Papa da Igreja como “um lar de solidariedade”, de uma Igreja de descida e saída. Ambos, descida e saída fizeram dele o Papa do encontro, do encontro com o povo simples em praça pública e nas periferias do mundo. Lá aconteceram também seus encontros com os movimentos populares, os povos indígenas e suas lutas por justiça e paz, por terra, teto e trabalho.

Com a morte de Francisco, o mundo perde um dos pilares da resistência, mas é inegável que o seu legado permanecerá e continuará na história. Onde houver floresta em pé e povos em resistência, ali estará viva a voz daquele que acreditou numa Igreja com rosto amazônico.

O olhar de Paulo Suess, assessor teológico do Cimi, sobre Francisco e os povos indígenas

“O falecimento do Papa Francisco nos fez refletir sobre o significado desse papado para os povos indígenas. Eu pude perceber que o projeto do Papa Francisco – presente em seus discursos, entrevistas, textos e gestos — encontrou aliados nos projetos dos povos indígenas.

Se olharmos os textos mais significativos, veremos que a encíclica Fratelli Tutti – “todos somos irmãos” – fala diretamente aos povos indígenas. A Laudato Si’ – sobre o cuidado da Casa Comum – também expressa profundamente a perspectiva desses povos. O Papa Francisco propôs, então, uma transformação da Igreja e do mundo. Essa transformação, de certa maneira, foi uma provocação para a Igreja; mas, para nós que trabalhamos com os povos indígenas, representou um grande apoio.

Essa transformação ele definiu como um caminho de autocrítica, de caminhar juntos, com sinodalidade – elementos que reconhecemos na vida dos povos indígenas: sinodalidade universal, ecologia integral, alegria no encontro, o rosto amazônico em contraposição à dominação da Amazônia, o encontro com os pobres, com aqueles que desafiam o projeto civilizatório, a inclusão dos marginalizados.

O Papa João XXIII, que deu início ao Concílio da Igreja, “abriu a janela” quando perguntado sobre seus objetivos com o Concílio. O Papa Francisco, por sua vez, abriu não só a janela, mas também a porta para os povos indígenas. Ele nos fala de uma Igreja em saída, da cultura do encontro – que vai ao encontro dos povos indígenas. Convida-nos não apenas a dialogar, mas, sobretudo, a escutar. Ele expressou isso em vários de seus textos. Quando fala de seus sonhos, é o sonho de uma Igreja missionária, capaz de transformar tudo.

O que nós praticamos desde o Concílio Vaticano II, de 1965, o Papa Francisco confirmou, dizendo: os povos indígenas devem “tornar-se os principais interlocutores, sobretudo quando se avança em grandes projetos que afetam os seus espaços. Para eles, a terra não é um bem económico, mas um dom de Deus e dos antepassados que nela repousam, um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus valores”. Isso está na Laudato Si’, a encíclica ecológica, nº 146. Assim, o que nós praticávamos, sem muito respaldo na doutrina, passa a constar nos documentos do Papa Francisco quase como uma confirmação dogmática.

Em janeiro de 2018, na cidade de Puerto Maldonado, no Peru, o Papa afirmou: provavelmente os povos indígenas nunca estiveram tão ameaçados em seus territórios como hoje. Ainda na Exortação Apostólica pós-sinodal Querida Amazônia, Francisco registrou a palavra de lideranças indígenas que descrevem a Amazônia como uma região de territórios roubados. Nós, como sociedade civil, como Cimi [Conselho Indigenista Missionário], como cristãos, somos chamados a reverter esse processo de territórios roubados, a nos solidarizar com a luta desses povos e a praticar o diálogo inter-religioso com o mundo e com os povos indígenas.”

Palavras que ecoam

 Ao longo de seu papado, Francisco deixou registrado um profundo reconhecimento da dignidade e da importância dos povos indígenas e manifestou compromisso com a defesa da vida, das culturas originárias e da Casa Comum.

O Papa foi, em muitos momentos, uma voz profética ao lado dos povos indígenas. Suas palavras convocam à escuta, à justiça e à conversão ecológica. Ao denunciar a exploração de territórios e culturas, e ao afirmar a sabedoria ancestral como caminho de esperança, Francisco fortaleceu, com sua autoridade moral e espiritual, a luta desses povos por direitos, terra, respeito e protagonismo.

Celebração na Basílica de São Pedro durante a abertura do Sínodo da Amazônia. Crédito da foto: Guilher-me Cavalli/Cimi

A seguir, reunimos algumas de suas falas mais marcantes — sobre ecologia, espiritualidade, justiça social e diálogo — que continuam a ecoar como sementes de mudança.

 “Os povos indígenas são um grito pela esperança. Eles nos lembram que os seres humanos não são donos da criação, mas apenas seus guardiões.” (Discurso no Encontro com os Povos Indígenas, Chile, 2018)

“Os povos originários têm muito a nos ensinar sobre cuidado com a Terra e sobre viver em harmonia com a criação.” (Encontro com indígenas na Amazônia, Peru, 2018)

“É necessário reconhecer os direitos dos povos indígenas às suas terras e territórios, que são essenciais para sua sobrevivência física e cultural.” (Sínodo para a Amazônia, 2019)

“A cultura dos povos indígenas não é um museu, é uma realidade viva que deve ser respeitada e nunca instrumentalizada.” (Discurso no Vaticano, 2017)

Laura Vicuña, do Cimi Regional Rondônia, com o Papa Francisco em 1º de junho de 2023. Foto: Vatican Media

“A história de sofrimento e desprezo sofrida pelos povos indígenas exige de nós uma atitude de justiça e reparação.” (Encontro com movimentos populares, Bolívia, 2015)

“Não podemos permitir que a globalização homogeneizadora ignore ou destrua a sabedoria ancestral dos povos nativos.” (Mensagem para o Dia dos Povos Indígenas, 2021)

“A espiritualidade indígena nos ensina que tudo está conectado: Deus, os seres humanos e a natureza.” (Encíclica Laudato Si’, 2015)

“Quando os povos indígenas são despojados de suas terras, não só perdem seu sustento, mas também algo de sagrado.” (Discurso no Canadá, 2022, durante sua viagem de reconciliação)

“É essencial criar espaços de diálogo onde os povos indígenas sejam ouvidos e suas vozes tenham peso nas decisões que os afetam.” (Sínodo para a Amazônia, 2019)

“A Igreja deve caminhar junto com os povos indígenas, não sobre eles, aprendendo com sua sabedoria e defendendo seus direitos.” (Encontro com bispos da Amazônia, 2020)

“Salvar os bancos a todo o custo, fazendo com que os cidadãos paguem o preço, sem uma decisão firme de rever e reformar todo o sistema, reafirma uma dominação absoluta das finanças, que não têm futuro e podem apenas gerar novas crises depois de uma longa e custosa recuperação aparente” (LS, 189).

Em visita ao Vaticano, o bispo de Chapecó (SC), Dom Odelir José Magri, entregou ao Papa Francisco o relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2021, publicado pelo Cimi. Foto: serviço fotográfico do Vaticano

“Muitos dos que detêm a maior parte dos recursos e do poder econômico ou político parecem principalmente fazer tudo o que está a seu alcance para ocultar os problemas ou dissimular os sintomas, tentando apenas reduzir certos impactos negativos das mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam que estes efeitos continuarão agravando-se caso mantenhamos nossos atuais padrões de produção e consumo” (LS, 26).

“A estratégia de compra e venda de ‘créditos de carbono’ pode dar origem a uma nova forma de especulação e prejudicar o processo de redução das emissões globais de gases poluentes. Este sistema parece ser uma solução rápida e fácil, que dá a aparência de um certo compromisso com o meio ambiente, mas que, em todo o caso, não constituiria uma mudança radical à altura das circunstâncias. Pior ainda, poderia tornar-se um remédio que favorece o consumo excessivo em certos países e setores” (LS, 171).

“Vós, os mais humildes, os explorados, os pobres e os excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está em grande parte em vossas mãos, em vossa capacidade de organizar e promover alternativas criativas, na busca diária dos 3 Ts (trabalho, teto, terra) e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança, nacionais, regionais e mundiais. Não vos subestimem! Vós sois os semeadores da mudança”. Encontro do Papa com movimentos populares em Santa Cruz (Bolívia, julho de 2015)

 

A suave brisa da manhã

 Por Roberto Liebgott – Cimi Sul – Equipe Porto Alegre

Ao olhar o dia que se anunciava, refletido por pequenos fachos dos raios de sol, sobrepostos à suave brisa, quase fria – numa manhã de maio – dei-me conta de que “estavam faltando eles – Francisco e Pepe –  e a saudade deles doía em mim”.

Dei-me conta de que as ideias no mundo circularão e se tornarão menos sensíveis, pois seus bons pensadores já não estão nessa dimensão.

Eles eram mensageiros da esperança, cativavam e alimentavam os ideais de bondade e justiça através de palavras, gestos, testemunhos e ensinamentos.

Dei-me conta de que eram sonhadores a nos provocar sonhos, a estimular a beleza da vida e a lutar contra os males dos homens – a ganância, acumulação, a exclusão, o egoísmo desmedido, o racismo estrutural, a xenofobia, o machismo, a intolerância de gênero e sexo.

Dei-me conta, todavia, de que os sonhos não morrem, persistirão, e de que sonhar “um sonho bom” é preciso, que os “sonhos não se sonham só”, são coletivos, comunitários e por causas comuns.

Lembrei-me da cultura e dos costumes dos Mbya Guarani, que têm os sonhos como condutores de vida e, inclusive, para ser ter um nome, que dará sentido à existência, é necessário que os Karaí, ou as Kunhã Karaí – líderes espirituais – sonhem.

Lembrei-me de que o sonho, nessa perspectiva, nunca será individualizado, já que compõe a cosmovisão, abriga o sagrado e o comunitário, portanto não é solitário, não se pode sonhar só – se sonha juntos.

Lembrei-me de que esse sonho vincula-se ao cotidiano da vida, à organização social, aos aprendizados, aos saberes, ele tem causa, mas nunca às individuais, mesquinhas e oportunistas

Lembrei-me de que o sonho do Karaí ou da Kunhã Karaí, que dará personalidade aos nascidos, exige a reciprocidade nas relações entre pessoas e as coletividades.

Ou seja, todos, de algum modo, participam, sem exceção, da ritualização da vida, a começar pelo preparo da terra na semeadura, cultivo e colheita do Milho Novo.

O Milho compõe, junto com o Petynguá – cachimbo sagrado – elemento essencial no ritual do batismo, que somente realizar-se-á depois do sonho.

O sonho, nesse ambiente   sagrado, tem causa e corresponsabilidade, chamando a todos e todas para um puxirão – mutirão – na colheita das espigas compostas de boas sementes.

Elas serão entregues, por cada um e cada uma, no ritual que batizará e formará a criança, dando-lhe a condição de ser adulta e autônoma.

Este é o resultado do sonho de uma causa comum, quando a semente plantada não pode ser artificial, é imprescindível o cultivo da própria semente

Aquela que é originária, deixada fértil pelos ancestrais, enquanto as híbridas, ou transgênicas, são estéreis, sufocam o sagrado e o modo de ser-viver Mbya Guarani.

Há, nesse contexto, uma certeza inquestionável: de que os sonhos irradiados, transmitidos e estimulados, não são inúteis, fazem compreender os caminhos da esperança.

Os Mbya Guarani orientam a que nunca se sonhe só, mas em mutirão, em torno de uma boa causa comum: o Bem Viver na Terra Sem Mal.

E, num tempo de partidas e despedidas, a saudade deles continuará a doer em mim!  Mas virá, como sempre, o raiar de um outro dia, quando haverá de penetrar, pela janela de meu quarto, a suave brisa da manhã!