
Vilma Rios no Encontro nacional de lideranças no tekoha Ita’y, na TI Panambi – Lagoa Rica, em março de 2025. Foto: Tiago Miotto/Cimi
Em território Guarani e Kaiowá, a única coisa que não cessa é o som ritmado dos mbaraka e dos takuapu, instrumentos sagrados que os nhanderu e as nhandesy, rezadores e rezadoras, utilizam para manter abertas suas vias de comunicação com o sagrado.
Foi sobre esse plano de fundo sonoro, nem um pouco estranho a uma Avá-Guarani, que Vilma Rios, liderança da Terra Indígena (TI) Tekoha Guasu Guavirá, compartilhou com os presentes no Encontro Nacional de Lideranças Indígenas que ocorreu na TI Panambi – Lagoa Rica, em Douradina (MS), sua visão sobre a dura realidade vivenciada por seu povo no oeste do Paraná. A partir dela, Vilma tece suas percepções sobre a luta, os desafios e as perspectivas para os povos indígenas no Brasil.
Em diversos momentos, a fala de Vilma fez a tenda onde ocorria a reunião ser inundada por aplausos e pelo chacoalhar agudo dos maracás. Num encontro que reuniu Kaiowá e Guarani de diversas retomadas e lideranças de variados povos e regiões do país, sua voz ressoava em muitas pessoas que vivem a mesma realidade de ataques e de violência, mas que também compartilham a profunda compreensão da resistência como um princípio vital – e que, como Vilma e os Avá, reafirmam diariamente a própria dignidade por meio da luta pela reconquista de seus territórios.
Eles insistem em dizer que é um conflito, quando na verdade não há conflito, mas sim um ataque
O texto abaixo é uma transcrição da impactante fala de Vilma no Encontro Nacional de Lideranças Indígenas, no tekoha Ita’y, uma das oito aldeias e retomadas que compõem a TI Panambi – Lagoa Rica, no dia 18 de março de 2025.
Vilma Vera
“Esse espaço é importante para nós, para a gente falar e somar nessa luta que é muito difícil. Eu fico muito feliz por estar mais uma vez no território de vocês, dos Guarani e Kaiowá.
Eu sei que essa terra já foi assinada com sangue indígena. Essa terra já é dos Guarani e Kaiowá, porque muito sangue já foi derramado. A nossa luta também não é diferente, a luta do povo Avá-Guarani não está sendo diferente da luta daqui do Mato Grosso do Sul.
Seria muito bonito se nós, indígenas, povos originários, estivéssemos sentados todos juntos, buscando uma vida melhor para nossos anciões, buscando um projeto para nossos jovens. Mas, infelizmente, nós estamos aqui reunidos enquanto lideranças, enquanto movimento, para a gente achar uma solução sobre como nós vamos parar essa era da bala, essa era da pólvora que estamos vivendo. Estamos em um país que se diz tão democrático, mas os povos indígenas estão vivendo uma era do chumbo e da pólvora.
E enquanto estamos lutando, enquanto o Estado coloca uma venda nos olhos, quem sofre somos nós, as mulheres e os anciões. Enquanto o MPI [Ministério dos Povos Indígenas] está lá na sede em Brasília, no ar condicionado, nós estamos aqui na base, levando chumbo, carregando traumas, levando uma vida que ninguém merece levar.
Nós não estamos vivendo. Eu sempre falo isso: nós não estamos vivendo no nosso território, nós não estamos aproveitando a nossa aldeia. Nós estamos sobrevivendo a cada dia, a cada noite. E quando eu falo que a luta do povo Avá-Guarani não está sendo diferente é porque também vivemos esse terror, essa tensão dos fazendeiros, do pistoleiro.
Hoje, a maioria das nossas crianças que deixamos dentro da nossa aldeia está traumatizada. As crianças não conseguem mais brincar, as crianças não conseguem mais ser crianças, porque a cada minuto tem que ficar atentas. As mulheres carregam traumas de todos os ataques que a gente vem sofrendo, e nós estamos aqui.
Aqui nesse país a vida de um indígena vale menos que um grão de arroz
É engraçado que a maioria que vem nos visitar, seja do Estado ou de qualquer órgão, eles insistem em dizer que é um conflito, quando na verdade não há conflito, mas sim um ataque. Porque as mortes que aconteceram aqui, o ataque a tiros que aconteceu na minha aldeia não foi um conflito. Foi uma emboscada, quando as crianças, quando as pessoas estavam jantando, e o pistoleiro vem por detrás e atira.
São covardes. Eles falam que são heróis, mas na verdade são grandes covardes. Eles sempre chegam por trás e saem, porque são covardes, que se vendem por dinheiro. Que tipo de ser humano é esse? E eles ainda são vistos como heróis por essa sociedade racista, anti-indígena. Eles são considerados heróis, mas o verdadeiro herói somos nós, que estamos resistindo depois de muitos ataques. Ainda permanecemos na luta, com fé e com esperança.
Enquanto indígenas, enquanto lideranças, nós temos que buscar um meio. Uma vez, eu lembro que eu falei para o padre Diego: estamos cansados de nota de solidariedade do MPI e da Funai. Nós precisamos de um plano infalível. Precisamos criar um meio de parar esses ataques, precisamos nos defender, porque infelizmente me parece que o Estado brasileiro, a justiça brasileira não vai conseguir nos proteger. Se até hoje está acontecendo morte, está acontecendo ataque dentro de uma comunidade, é porque infelizmente o Estado brasileiro não vai conseguir proteger nenhuma vida indígena.
Porque, infelizmente, aqui nesse país a vida de um indígena vale menos que um grão de arroz, vale menos que um grão de soja. Isso para eles tem mais valor do que a nossa própria vida. Um grão de milho vale muito mais para eles.
Mas nós sabemos o nosso valor, isso eles não podem nos tirar. Eles podem tentar. Hoje, a gente fala que temos os nossos direitos, no papel. Mas, infelizmente, na prática, nós não temos mais direitos. Porque a cada minuto, a cada segundo, lá em Brasília, a bancada ruralista luta para tirar totalmente nossos direitos. No papel eles existem, na Constituição, onde com muita força e com muita luta nós tivemos a garantia do nosso direito. Mas, infelizmente, nem no papel ele vale.
Não temos pistola para enfrentar essa violência toda, a única coisa que nós temos é a nossa espiritualidade
Por isso que eu falo: temos que fazer uma mobilização, temos que pensar enquanto povos indígenas, temos que pensar enquanto Avá-Guarani, enquanto povo Kaiowá, nós temos que pensar de que forma nós vamos fazer de novo valerem esses direitos, porque hoje nós não temos mais.
Nós pedimos socorro quando sofremos ataques, mas parece que infelizmente ninguém mais ouve o nosso grito de socorro. Não é possível que não exista uma forma da gente vencer essa guerra.
Estamos vivendo numa guerra, e nessa guerra o único lado que perde são os povos indígenas. Nós não temos as armas que eles usam, nós não temos metralhadora, nós não temos pistola para enfrentar essa violência toda. A única coisa que nós temos é a nossa espiritualidade, é o nosso mbaraka, é o nosso takua, e principalmente o nosso corpo.
É a única coisa que você tem para enfrentar. E nós temos que buscar uma ajuda. Se aqui dentro do país Brasil não estão conseguindo garantir esses direitos aos povos originários, busquemos em outros países. Não é possível que os países que também recebem produtos brasileiros não consigam nos ajudar. Dentro do Brasil, o que nós podíamos fazer, já fizemos tudo.
Em cada porta que a gente acha que pode nos ajudar a gente já bateu. Já fomos. E até hoje, ainda acontecem essas violações de direitos. E até hoje, nenhum órgão do governo conseguiu nos defender dessa bala. E até hoje, os órgãos que estão nos representando lá em Brasília não estão freando a bala que vem na direção do nosso corpo, na direção das nossas crianças.
Nós temos uma criança de 7 anos e um adolescente de 14 anos que foram vítimas dos fazendeiros, dos pistoleiros. E essas são crianças que deveriam viver como crianças, mas hoje carregam traumas e medo. Então, alguma coisa precisa ser feita. Alguma coisa, pelo menos.
Não adianta tentar acabar com os direitos dos povos indígenas, porque não vão conseguir. A nossa resistência está em nós

Encontro nacional de lideranças indígenas na TI Panambi – Lagoa Rica (MS) | 18-20/03/2025
Nós, enquanto movimento, precisamos pensar. Repensar o nosso movimento, por onde nós temos que buscar essas soluções. Nós não erramos. O erro não está no nosso movimento, o erro não está na retomada, porque tudo que foi retomado é dos povos indígenas. Estamos fazendo autodemarcação porque o Estado brasileiro, as pessoas que deveriam garantir a proteção do território e a proteção dos povos indígenas, não fizeram.
Tudo o que aconteceu foi por falta de boa vontade dos governantes. Porque se eles tivessem uma boa vontade, parte desses conflitos não precisaria acontecer. Pessoas que perderam a vida não precisariam ter perdido. Estariam aqui ouvindo, estariam ainda dentro da família, junto com os pais. As pessoas que carregam chumbo no corpo não precisariam carregar, se eles tivessem a boa vontade de demarcar o território.
Eu lembro bem: quando o presidente Lula ganhou as eleições, ele prometeu. Mas, infelizmente, tem a bancada ruralista. Vencemos o Bolsonaro, mas os cachorrinhos deles ainda estão lá. É isso que temos que vencer mais uma vez. Nós temos que vencer o cachorrinho do presidente, que foi um covarde, que tentou arruinar o movimento, que tentou tirar nossos direitos.
Mas eles não entendem que eles podem matar parte dos povos indígenas aqui no Brasil, mas a nossa resistência está em nós. Não é no papel. A nossa resistência carregamos desde que a nossa mãe nos gerou. Então, não adianta tentar acabar com os direitos dos povos indígenas, porque não vão conseguir. A nossa resistência está em nós, em cada um de nós, e somos muito dentro do Brasil. Somos pessoas, somos povos de resistência.
Não é à toa que depois de um ataque a gente ressurge. Não é à toa que depois da morte dos nossos parentes, ainda continuamos permanecendo. Porque essa luta não é só pelas pessoas que ainda estão vivas, mas sim pelas pessoas que tombaram dentro da retomada. É por elas que ainda estamos aqui.
A nossa liderança está sendo caçada, a cabeça da nossa liderança hoje está valendo prêmio para eles
Os fazendeiros falam: se a gente matar a liderança mais forte, o movimento acaba. Mas eles não entendem que essa luta é pelas pessoas que tombaram. Podem matar a liderança…
Hoje, em Guaíra, nós estamos escondendo a nossa liderança, porque até o nosso movimento está sendo criminalizado. Pessoas que lutam pelo seu território são perseguidas, não só pelos jagunços, mas também pela justiça, que também é o cachorrinho do Bolsonaro. A nossa liderança está sendo caçada, a cabeça da nossa liderança hoje está valendo prêmio para eles.
Só que não são só as lideranças que hoje em dia estão lutando. Somos muitos. E nós, mulheres, a gente aprendeu: hoje, nós não corremos mais da bala. Em vez de correr, a gente se coloca na frente da bala, porque nós não temos mais medo, porque a única coisa que nós temos é a nossa vida.
Lá na cidade, quando vem algum representante da prefeitura, eu sempre falo que eles não vão conseguir nos calar. E realmente nós não vamos mais abaixar a cabeça, nós não vamos mais correr da bala, nós não vamos mais deixar a nossa terra para eles passarem gado, plantarem soja, porque nós aprendemos a lutar.
Quando vocês acharem que não tem uma solução possível, lembrem-se dos rezos do povo que, quando leva chumbo, o único barulho que ecoa depois de um ataque é o barulho do mbaraka. É o barulho do canto. Nós, indígenas, vamos firmes nessa luta porque as únicas pessoas que podem realmente defender esse direito, buscar proteger o nosso território, somos nós. Não importa quantas pessoas vão tombar, nós vamos continuar, enquanto mulheres, enquanto mães, vamos continuar firmes nessa caminhada. Não vamos mais deixar que a plantação de soja passe pelo nosso território. Não vamos mais deixar que essa era do chumbo, que essa era da pólvora nos assuste.
Eu sou muito grata pelo convite que recebi e vim com a Paulina [Rokavy Ponhy Martines, também liderança da TI Tekoha Guasu Guavirá]. Eu sempre falo que eu sou semente que ela plantou, porque eu lembro que, no início de 2013, a única mulher no meio de outros caciques, buscando os direitos e o espaço para as mulheres, foi a Paulina. Eu tenho muito orgulho. Se hoje eu estou aqui, também falando da nossa luta, foi porque aprendi junto com essa mulher. Eu sou uma aluna e eu sou a maior fã da Paulina. Ha’evete!”