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ONU recomenda ao STF prioridade no julgamento da Lei do Marco Temporal e ao governo federal urgência nas demarcações

A relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a situação de pessoas defensoras de direitos humanos, Mary Lawlor, esteve no Brasil entre os dias 8 e 19 de abril. Foto: ACNUDH/UN

Por Renato Santana, da Assessoria de comunicação – Cimi 

A relatora da ONU sobre Defensores de Direitos Humanos, Mary Lawlor, recomenda ao Supremo Tribunal Federal (STF) prioridade ao julgamento da Lei 14.701/23, a Lei do Marco Temporal, ao se referir ao Brasil em um informe de 19 páginas [1] publicado nesta sexta-feira (31).

Mary recomenda ainda que o governo brasileiro acelere as demarcações das terras indígenas como forma de proteger os defensores e defensoras de direitos humanos. “Priorizar com a máxima urgência, em estreita colaboração com o Ministério dos Povos Indígenas e agências relevantes, a demarcação de territórios indígenas”, diz trecho do relatório.

O documento foi produzido após uma viagem da relatora ao país, em abril de 2024, e será alvo de um debate público em fevereiro, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, conforme informou Jamil Chade [2].

As Relatorias Especiais são parte de um grupo de mecanismos conhecido como Procedimentos Especiais [3] do Conselho de Direitos Humanos. No caso da Relatoria da ONU sobre Defensores de Direitos Humanos, o mandato não tem como missão se debruçar sobre o tema “povos indígenas”, senão a situação de defensores e defensoras.

Ocorre que a garantia territorial, e os temas que a atravessam, é fundamental para a defesa e proteção dos defensores – sejam indígenas, quilombolas, sem-terras ou camponeses. Para Mary “grande parte da violência contra pessoas defensoras de direitos humanos no país está enraizada no conflito pela terra”. O que explica suas recomendações.

No STF, o julgamento da Lei do Marco Temporal, aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2023, está travado. O ministro Gilmar Mendes é o relator de duas ações: uma de inconstitucionalidade e outra de constitucionalidade, mas não as levou ao Plenário da Corte.

O ministro decidiu abrir uma Câmara de Conciliação para tratar da controvérsia sem suspender a lei. Por essa razão, entre outras, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se retirou da Câmara e pede ao STF que julgue a matéria.

Quanto às demarcações, uma forma de se referir ao conjunto das etapas do procedimento demarcatório, o atual governo Lula homologou 13 terras indígenas

No entanto, para o movimento indígena e organizações indigenistas, o governo federal está devendo: os anúncios dos últimos dois anos eram esperados para acontecer ainda nos primeiros dias da gestão. Por outro lado, o governo tem deixado de fazer encaminhamentos administrativos por pressão política.

Bandeira nacional fincada na retomada Yvy Ajere, Terra Indígena Lagoa Panambi. Comunidade Guarani e Kaiowá segue sob ataque. Foto: Ascom/Cimi

Prevenção ao genocídio Guarani e Kaiowá

Para a relatora da ONU, os Guarani e Kaiowá estão “entre os povos indígenas do Brasil mais afetados pela tese do Marco Temporal, tendo em vista que a maior parte de suas terras foram tomadas antes de 1988. Ataques a defensores e defensoras dos direitos humanos, que lideram a sua luta para ver os seus direitos respeitados, são generalizados”.

Mary afirma que são ataques persistentes. Lembra que a situação dos Guarani e Kaiowá já havia sido relatada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e pelo conselheiro Especial do Secretário-Geral da ONU para a Prevenção do Genocídio.

“Remediar a injustiça e a desigualdade em relação à terra é fundamental para a proteção daqueles defensores dos direitos humanos. Para acabar com as matanças, deve haver demarcação, titulação e reforma agrária. Os invasores devem ser removidos e os crimes que foram perpetrados devem ser levados à Justiça”, recomenda o relatório.

Em reuniões com o governo federal e a Secretaria de Estado da República, Mary afirma que os representantes do Estado brasileiro concordaram com suas conclusões e estão tomando providências a respeito

O relatório cita o ataque ocorrido em 24 de junho de 2022 contra o Guarani e Kaiowá do tekoha Guapoy. “Em um evento conhecido como Massacre de Guapoy, a Polícia Militar estadual, supostamente agindo no interesse de grandes proprietários de terras, entraram nas terras tradicionais na tentativa de despejar os Guarani e Kaiowá sem ordem judicial”, destaca o relatório.

Mary relata que “as terras foram reocupadas pelos Guarani e Kaiowá em resposta ao atraso nas suas exigências de demarcação – um ato que a Relatora Especial considera como a defesa coletiva dos seus direitos humanos. Um indígena foi morto e muitos ficaram feridos durante o ataque, incluindo várias pessoas que foram hospitalizadas com ferimentos a bala”.

O trecho se completa com outro, onde a relatora legitima as retomadas: “pessoas defensoras de direitos humanos no Brasil vêm pedindo ao Estado que atenda a essas demandas há gerações. Por meio de retomadas, autodemarcação e autotitulação, bem como ações legais”.

Enquanto a Polícia Militar, segue o relatório, disparava munição real contra a comunidade desarmada, inclusive de um helicóptero estadual. Mary lembra que medidas de precaução para a proteção dos indígenas foram ordenadas pela CIDH. “No entanto, a comunidade continua a viver com medo, com os seus líderes em extremo risco, e tem havido total impunidade para esses ataques”, conclui.

20º Acampamento Terra Livre. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Movimento Invasão Zero

“O Movimento Invasão Zero lançou ataques violentos, bem divulgados, em terras e contra ativistas de direitos humanos na Bahia, inclusive dos povos indígenas, e tem sido acompanhado pela Polícia Militar ao fazer esses ataques”, diz trecho do relato de Mary.

No documento, a relatora aponta que o Movimento de Invasão é “um exemplo bem organizado e bem conectado a um fenômeno presente em todo o Brasil” onde grupos contrários à reforma agrária e à demarcação de terras indígenas envolvem-se em violência coordenada para se opor a elas.

Para a relatora, trata-se de um movimento que é herdeiro e pretende levar adiante a política anti-indígena do ex-presidente Jair Bolsonaro

“O Movimento Invasão Zero é uma pessoa jurídica de registro nacional formada na Bahia, em 2023. Seu rosto público é Luiz Uaquim, agricultor de Ilhéus. Ele afirma ser um grupo pacífico criado para proteger os direitos de propriedade e recebeu o apoio de alguns políticos do país, que formaram a Frente Parlamentar Invasão Zero”, diz trecho do relatório.

A relatora explica que o braço parlamentar do Invasão Zero é liderado pelo deputado federal Luciano Zucco (PL), principal articulador de um “inquérito espúrio”, nas palavras de Mary, sobre o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST)

O bloco parlamentar  liderado por Zucco, aponta o relatório, também apresentou um Projeto de Lei para negar serviços sociais a pessoas envolvidas em ocupações de terras, que já passou pela Câmara dos Deputados.

Mary lembra no relatório que na sequência do assassinato de Nega Pataxó Hã-Hã-Hãe [4], o Secretário de Segurança Pública da Bahia afirmou que o Movimento Invasão Zero orquestrou o ataque, destaca o relatório.

Nesta foto, garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku, município de Jacareacanga. Foto: Marizilda Cruppe | Amazônia Real

Nesta foto, garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku, município de Jacareacanga. Foto: Marizilda Cruppe | Amazônia Real

Convenção 169 da OIT

Para o Ministério dos Povos Indígenas, a relatora recomenda o pleno respeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), “tanto para projetos do setor estatal como do setor privado, respeitando aabordagem desejada e tradições das comunidades afetadas”.

Mary destaca projetos de escala industrial como particularmente sensíveis: mineração, exploração madeireira, agronegócio, créditos de carbono, infraestrutura, desenvolvimento e produção de energia

Conforme o relatório, é preciso “reconhecer e apoiar medidas proativas tomadas pelos povos indígenas pelos seus direitos, incluindo o direito à autodeterminação. Isso inclui respeitar e observar os protocolos de consulta e consentimento desenvolvidos pelos povos”.

No escopo da visita de Mary ao país, o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH), articulação composta por 48 organizações e movimentos sociais, apresentou uma carta aberta para a relatora [5] apontando três pontos centrais sobre a política de proteção no Brasil: funcionamento do GTT Sales Pimenta; instalação do ConDel e precarização da política de proteção (citando inclusive os casos dos convênios estaduais).