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Indígenas não precisam morrer pelo direito à vida

Manifestação Guarani e Kaiowá em Brasília (DF) – 08/08/2024. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Dom Jaime Spengler, Dom Leonardo Steiner, Maria Victoria Benevides, Helena Bonciani Nader, Patricia Vanzolini, Renato Janine Ribeiro e Octávio Costa *

Juntamos aqui as nossas vozes num alerta à sociedade brasileira. É extremamente preocupante a escalada da violência contra os povos indígenas, verificada em boa parte dos estados onde estão presentes. Apesar de o atual governo ter criado o Ministério dos Povos Indígenas, implementado a fiscalização sobre seus territórios e gerado expectativas em relação à demarcação e regularização de suas terras, é impossível não notar a permanência de um clima de “terra sem lei” sobre diversos povos, tristemente exemplificado nos recentes conflitos em Douradina (MS) [1], contra os Guarani e Kaiowá.

Depois de muito resistir nos últimos anos, os indígenas no Brasil foram colocados no centro de uma situação não só de insegurança, mas de incongruência jurídica. Em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu seus direitos territoriais como cláusulas pétreas da Constituição, tornando sem efeito a tese do marco temporal. O Congresso Nacional reagiu para atacar esses mesmos direitos, aprovando a Lei 14.701 no apagar das luzes do mesmo ano. Submetido o tema aos mecanismos de controle da constitucionalidade, surpreendeu a iniciativa do ministro Gilmar Mendes, decano do STF, já em 2024, de promover uma “conciliação entre as partes” sobre questões relativas às terras indígenas, em vez de ratificar o que fora estabelecido pela Corte. É a partir dessa conjuntura que acompanhamos o aumento dos casos de violência.

Alvo dos interesses de setores predatórios do agronegócio e da mineração, os indígenas tentam sobreviver, como fazem há mais de 500 anos. Lutam para fazer valer a lei maior que os protege. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, diz o artigo 231 da Constituição Federal. Portanto são detentores de direitos inalienáveis e inegociáveis, embora desrespeitados a cada dia.

O ambiente “terra sem lei” tem consequências graves. Segundo o relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil [2], divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário, foram registrados, só no ano passado, 1.276 conflitos envolvendo direitos territoriais, com invasões, exploração ilegal de recursos naturais e danos ao patrimônio. Foram 208 indígenas assassinados no mesmo período. A cobiça sobre os territórios tradicionais desses povos oculta o fato de que são os que mais preservam o meio ambiente, além de nos legar toda uma herança no campo alimentar, bem como no manejo sustentável da fauna e flora. Suas tradições e culturas, parte integrante de seu viver, exigem a proteção de seus territórios.

Os indígenas não precisam pedir de joelhos o que lhes é assegurado pela lei. Não precisam ser fotografados em estado de desnutrição grave, como aconteceu aos Yanomami, cercados por garimpeiros que envenenam seus rios e por grileiros que incendeiam suas matas. Não precisam ser alvo das milícias e bandos de jagunços, quando é dever do Estado e do governo federal garantir a segurança em seus territórios. Os indígenas não precisam morrer pelo direito à vida.

Por essas razões, nossas entidades clamam pela presença do Estado diante da escalada da violência, para que seus agentes atuem com firmeza, sob o império da lei. Ao Ministério da Justiça, pede-se, em caráter de urgência, a manutenção da Força Nacional nos territórios em conflito, evitando desfechos sangrentos e dando a assistência devida aos indígenas. À Procuradoria-Geral da República, responsável pelo Ministério Público Federal, pedem-se a investigação e a aplicação da lei sobre os crimes praticados. Do STF, aguardamos que declare quanto antes a inconstitucionalidade da Lei 14.701/23, cuja vigência acarreta a paralisação da demarcação das terras indígenas e o aumento das agressões contra as comunidades. E, por fim, a todos os cidadãos e cidadãs brasileiros, conclamamos uma permanente vigília, na certeza de que o extermínio dos povos originários é também a morte do nosso futuro como nação.

*Dom Jaime Spengler é presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Dom Leonardo Steiner é presidente do Conselho Indigenista Missionário, Maria Victoria Benevides é presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo — Comissão Arns, Helena Bonciani Nader é presidente da Academia Brasileira de Ciências, Patricia Vanzolini é presidente da Ordem dos Advogados do Brasil-São Paulo, Renato Janine Ribeiro é presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Octávio Costa é presidente da Associação Brasileira de Imprensa

Este artigo foi originalmente publicado em O Globo [3]