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Conclusão do julgamento sobre direitos originários, no STF, não significa fim da luta do povo Xokleng

Indígenas do povo Xokleng próximo ao Rio Itajaí, que passa pelo TI Ibirama Laklãnõ. Foto: Isaias Patte Xokleng

Por Marina Oliveira, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Há um pouco mais de um mês – no dia 21 de setembro –, o placar final do julgamento sobre direitos originários [1], no Supremo Tribunal Federal (STF), emocionou as pessoas que acompanhavam a sessão por meio de um telão instalado próximo à Praça dos Três Poderes, em Brasília. Olhos marejados, longos abraços, danças e cantos compunham o cenário daquele momento, que entrou para a história dos povos indígenas do país.

Apesar da comemoração, também escutava-se, principalmente do povo Xokleng [2] – centro desse debate –, que a rejeição do marco temporal no STF, por 9 votos a 2, era apenas a continuidade de uma luta que já dura mais de um século.

E os indígenas estavam certos: no dia 27 de setembro, mesma data em que o STF concluía a análise do caso de repercussão geral sobre direitos constitucionais dos povos originários, o Senado Federal aprovou, às pressas, o Projeto de Lei (PL) 2903/2023 [3] – proposição que busca restringir os direitos territoriais garantidos aos povos indígenas na Constituição Federal de 1988. A aprovação do projeto na Casa também ocorreu praticamente uma semana após a Suprema Corte rejeitar a tese ruralista do marco temporal.

Povos indígenas marcham em direção ao STF, no dia 30 de agosto de 2023, para acompanhar votação sobre marco temporal. Foto: Hellen Loures/Cimi

Povos indígenas marcham em direção ao STF, no dia 30 de agosto de 2023, para acompanhar votação sobre marco temporal. Foto: Hellen Loures/Cimi

Na última sexta-feira – 20 de outubro –, o PL 2903/2023 passou pelo Poder Executivo: Lula vetou total ou parcialmente 24 de 33 artigos da proposição, perdendo a oportunidade de cumprir com o que prometia antes mesmo de iniciar o mandato, quando dizia ter “obrigação moral” de fazer reparação a povos indígenas.

Os vetos de Lula ainda poderão ser derrubados pelo Congresso Nacional, já que a maioria dos parlamentares vende a ideia de que “a paz no campo” só existirá com a existência de um marco temporal para a demarcação dos territórios indígenas. 

 

A luta continua

Como se não bastasse toda essa batalha para garantir o que já é assegurado pela própria Constituição Federal, o povo Xokleng ainda foi surpreendido com uma ação do estado de Santa Catarina logo após a derrota sofrida no STF. No dia 7 de outubro, o governo estadual decidiu fechar as duas comportas da Barragem Norte [4], de José Boiteux (SC), sob alegação de iminente desastre natural que poderia vir a atingir parcela da população do vale do Rio Itajaí e adjacências, colocando em risco a vida dos indígenas e de milhares de outros catarinenses que vivem à jusante da barragem. Em plena época de chuva no estado.

Sob uso de força policial, a decisão foi colocada em prática logo pela manhã do dia 8 de outubro. Nesse episódio, diversos indígenas ficaram feridos devido à ação ilegal da polícia do estado de Santa Catarina.

Ação ilegal da polícia do estado de Santa Catarina, na TI Ibirama Laklãnõ, na manhã do dia 8 de outubro de 2023, deixa indígenas feridos. Foto: povo Xokleng

Apesar de uma das comportas ter sido reaberta, os indígenas seguem ilhados, sem acesso a serviços médicos e Educação. Os Xokleng relatam que a água do rio fechou estradas, inundou casas e desabrigou famílias. Além disso, algumas aldeias continuam sem acesso à internet e sem energia elétrica.

De acordo com uma liderança do povo – que não será identificada por segurança –, outra situação que está causando transtornos à comunidade é a ida, sem qualquer aviso, de representantes do governo – escoltados pela Polícia Federal – à terra indígena para fazer o controle da barragem. Ao Cimi, a liderança indígena disse que gostaria de ser informada sobre as datas e horários dessas visitas ao território, porque a falta de aviso causa apreensão às pessoas que moram no local, principalmente às crianças e anciões. 

 

Reparação 

Perante esse contexto, lideranças Xokleng resistem para fazer valer uma decisão transitada em julgado em agosto de 2017, no STF (ARE 943.208), relacionada à ACP nº 5013528-53.2018.4.04.7205, movida pelo Ministério Público Federal (MPF). A decisão judicial condena a União, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o estado de Santa Catarina por não terem cumprido acordos anteriormente firmados com o povo Xokleng, relacionados à construção da Barragem Norte. Além disso, obriga os entes públicos em questão a implementar políticas públicas na TI Ibirama La-Klãnõ.

Tal decisão judicial, até então, não foi cumprida – inclusive, há multa diária, para cada réu, por descumprimento após três anos da decisão. Entre as determinações da Justiça, estão a construção de casas, escolas, pontes, estradas, entre outros. 

Posteriormente, o MPF, titular do processo, ingressou com uma ação executória – vinculada à decisão do STF mencionada acima – para que o estado de Santa Catarina, Funai e União cumpram com tais medidas. O processo está, atualmente, em tramitação na Justiça Federal de Blumenau – responsável pelo município de José Boiteux, onde está localizada a Barragem Norte.

Em Brasília, os indígenas pedem o cumprimento dessas medidas, o pagamento da multa – a fim de diminuir o impacto da crise humanitária enfrentada, atualmente, pelos Xokleng – e recursos para mitigar os impactos do fechamento da barragem, até que seja concluída a regularização fundiária da Terra Indígena (TI) Ibirama La-Klãnõ.

 

A barragem

A Barragem Norte foi construída durante o governo militar, na década de 1970, sobre a TI Ibirama La-Klãnõ com o objetivo de conter as enchentes do Rio Itajaí. Mas, apesar de já funcionar há mais de 30 anos – a inauguração ocorreu em 1992 –, ela nunca foi concluída. O Canal Extravasor da barragem, responsável por garantir a segurança das operações, até então não foi construído. 

Em entrevista recente ao NSCTotal [5], o Secretário de estado da Defesa Civil, coronel Armando, disse que desconhece as condições da tubulação e que “seria perigoso fechar as comportas sem a garantia de conseguir abri-las novamente”. Ainda de acordo com o responsável pela pasta, a água poderia verter e a situação sair do controle.

“Seria perigoso fechar as comportas sem a garantia de conseguir abri-las novamente”

Barragem Norte, sobreposta à Terra Indígena (TI) Ibirama Laklãnõ, do povo Xokleng. Foto: Isaías Patte Xokleng

Uma matéria publicada pelo Cimi [6], em 2020, apresenta os impactos da construção da Barragem Norte na vida do povo Xokleng, que perduram até os dias atuais: “reduziu drasticamente as áreas planas e boas para a agricultura, também de moradia, degradando o rio, produzindo cheias no inverno, que inundam uma outra parte importante do território, e impondo estiagem nas outras estações, matando os peixes; a barragem e sua zona de impacto estão dentro dos parcos 14 mil hectares remanescentes de todo o esbulho promovido no decorrer do século XX no território tradicional Xokleng; por fim, os indígenas partiram de uma aldeia formando outras oito, enfraquecendo a agência do povo e sua organização social, sendo levados ao deslocamento interno forçado – e até os dias atuais essa perambulação ainda não acabou”.

 

ACO 1100

As lideranças Xokleng aguardam, ainda, a conclusão do julgamento da Ação Cível Originária (ACO) 1100, que está paralisado desde junho deste ano, no STF. A interrupção do julgamento [7] adia a conclusão do caso que envolve a disputa possessória da TI Ibirama-Laklãnõ.

O povo Xokleng espera, ansiosamente, há mais de uma década pela decisão dos ministros da Suprema Corte sobre a constitucionalidade da portaria que declara terra indígena o território por eles tradicionalmente ocupado, uma área de 37.108 hectares. A portaria foi emitida em 2003 pelo Ministério da Justiça (MJ).

Povo Xokleng participa de marcha contra o marco temporal, em Brasília. Foto: Mita Xipaya/Coiab

Não há qualquer impedimento jurídico em relação à conclusão final da regularização do território Xokleng – já existindo, inclusive, Portaria Declaratória. Por isso, os indígenas, mais do que nunca, lutam pela homologação, demarcação e devolução de suas terras para a ocupação das áreas e construção de casas para as famílias desabrigadas e em áreas de risco.