- Cimi - https://cimi.org.br -

Combate ao suicídio indígena depende de políticas de prevenção da vida e da cultura dos povos

A antropóloga Lúcia Helena Rangel durante apresentação pelo Cimi do relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil em 2014. Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

De 2002 a 2018, foram registrados 782 suicídios nas comunidades indígenas brasileiras, o que significa uma “variação” de 30 a 73 casos por ano, diz a antropóloga Lucia Helena Rangel à IHU On-Line. Segundo ela, o relatório do Conselho Indigenista Missionário – Cimi demonstra que o quadro de suicídios entre os Guarani-Kaiowá que residem no Mato Grosso do Sul não se alterou em quatro décadas, mas também sugere que esse fenômeno não é restrito a essas comunidades.

Na avaliação dela, o enfrentamento desse fenômeno não depende da busca de alternativas na área da saúde, mas antes na promoção de políticas públicas que favoreçam o desenvolvimento dos povos tradicionais. “Não se trata de encontrar uma medicina preventiva, mas uma providência com políticas de prevenção da vida, da cultura dos povos, das escolhas de cada um. Mas o Estado não faz isso; ele é uma máquina de homogeneizar cidadãos que não oferece uma contrapartida”.

Lucia Helena Rangel é Assessora Antropológica do Cimi, Professora Doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora no campo da Etnologia Indígena

Confira parte da entrevista realizada em 2018.

IHU On-Line – As mudanças na vida das comunidades e a falta de perspectiva são indícios que explicam a causa do suicídio ou o conhecimento das causas ainda está em aberto?

Lucia Helena Rangel – Como vários especialistas já disseram, o suicídio é um fenômeno complexo que tem várias facetas e não podemos analisá-lo procurando apenas uma causa, porque os fenômenos sociais são complexos e têm várias causas. Então, existem três dimensões que são analisadas: a dimensão individual, que diz respeito ao indivíduo que comete suicídio; o contexto social, que é mais ou menos tenso, ou seja, são tensões mais ou menos graves, porque elas acontecem em todos os locais e nunca vamos chegar a um ponto em que todo mundo alcance a paz e ninguém fique descontente, mas de todo modo as tensões são fortes; e tem também o caso do suicídio altruísta, como dizia Durkheim, que são aqueles casos em que o indivíduo morre para salvar os outros, como o soldado que está na guerra, ou os casos de terroristas.

No caso dos suicídios dos indígenas, que afetam sobretudo a população jovem, eles são preocupantes porque no plano da dimensão social existe uma série de coisas que são complicadas. Se no caso do Mato Grosso do Sul a falta de terra é um agravante, no Alto Solimões não há falta de terra, mas em ambos os casos podemos ver como o trabalho masculino é afetado. Por exemplo, para os povos indígenas, o homem vai caçar, pescar e tomar as iniciativas de localizar lugares bons para a agricultura e fazer derrubada e essa é uma tradição milenar, mas essa tradição é afetada de forma brutal no caso de não ter terra, como é o caso do Mato Grosso do Sul. Eles precisam de atividades que os façam se tornar adultos. No caso do Alto Solimões, essa transformação das aldeias em cidades vai acabar afetando os homens do mesmo jeito.

É complicado quando observamos a situação dos povos indígenas, sobretudo nessas situações limítrofes, em que os limites da sociabilidade são muito afetados; o que acontece é que a mudança que ocorre na vida é uma mudança que impede a reprodução da vida.

Se a sociedade brasileira oferecesse de fato uma alternativa, talvez os povos tivessem encontrados outros modos de sociabilidade, mas a sociedade não oferece. Eles vão morar na beira da estrada, como acontece no Mato Grosso do Sul? Isso é uma alternativa a que?

IHU On-Line – Que tipo de alternativa a sociedade poderia oferecer?

Lucia Helena Rangel – Para cada sociedade se tem um padrão de sociabilidade e para os povos indígenas, a passagem da idade infantil para a adulta é uma passagem ritualizada, que dura um tempo de dois ou três anos. Quando esse período do ritual termina, o indivíduo se torna um adulto e isso significa que ele vai casar, ter filhos e trabalhar de acordo com a divisão de trabalho daquela sociedade. Esse trabalho de caçar, pescar, plantar, construir casa, conhecer a natureza e aprofundar o conhecimento dos saberes tradicionais é o que caracteriza o adulto, e isso é a sociedade quem oferece: a pessoa casa e vai dar início ao seu roçado, caçar junto com os homens etc.; esse é o padrão. Nas sociedades capitalistas, o padrão é o contrato social baseado no trabalho assalariado; é isso que a sociedade capitalista oferece para os seus indivíduos e, com isso, ela oferece desemprego, discriminação e marginalização dessas comunidades indígenas. Então, trata-se de um problema que a sociedade tem com os indivíduos.

Então, quando o Cimi insiste na demarcação de terras e nos programas de qualificação no trabalho com a terra, não estamos repetindo uma palavra de ordem, mas chamando atenção para uma condição de vida, porque a sociedade, por um lado, não oferece um contrato social para seus indivíduos e, por outro lado, nega a alguns indivíduos a possibilidade de ter uma vida com padrões diferentes, então, não respeita a diversidade. Ter terra não significa só ter terra, mas manter uma sociabilidade, e o padrão que será construído por essas sociedades será construído a partir das suas condições. Então, existem condições que empurram os indivíduos para a marginalidade e nessas regiões de fronteira, a marginalidade está posta no tráfico de drogas, no contrabando, na extração ilegal de madeira, ou seja, é um mundo cruel. Isso acaba afetando a vida cotidiana das famílias. Então, existem famílias indígenas em que os pais e mães são alcóolatras e os filhos não querem isso para si, porque eles têm vergonha disso e um sentimento de que isso não é bom. Então, o que explicaria esse alto índice de suicídio? Ouso dizer que são todos esses fatores que são desagregadores, e que muitas vezes o suicídio é um ato de violência, mas muitas vezes ele é um ato de salvação para aqueles que querem ir embora desse mundo.

IHU On-Line – A senhora tem notícias de como as comunidades indígenas têm lidado com esses casos de suicídio? Como elas compreendem e avaliam o que está acontecendo?

Lucia Helena Rangel – Tenho um conhecimento superficial, mas percebo que elas não gostam de falar disso. Elas não fazem essa análise distanciada que fazemos, interpretando os dados, falando das condições; elas não gostam de falar. As famílias que têm filhos que se suicidam não falam sobre isso. É uma espécie de tabu e elas dizem que a situação é muito triste. Talvez já exista algum trabalho abordando essa perspectiva de captar a visão indígena, mas os trabalhadores que conheço são de pesquisadores falando sobre.

IHU On-Line – Como o aumento do suicídio entre indígenas tem sido tratado pelos órgãos que atuam junto a essas comunidades e pelo Estado em geral? Há uma preocupação em investigar esses casos?

 Lucia Helena Rangel – Diante do quadro, a atuação com as comunidades indígenas deveria ser sempre voltada para a promoção e valorização da pessoa, da produção de alimentos, enfim, voltada para uma valorização daquilo que confere à comunidade uma autonomia da sua vida social. Esse não é o caso do Estado brasileiro, muito menos da SESAI, porque o atendimento à saúde está voltado para a terapêutica de cura ou amenização da dor: se a pessoa tem febre, se dá um antitérmico. A medicina tradicional, que valoriza o indivíduo como um todo e integral, é desvalorizada e chama o pajé de curandeiro. Ou seja, há uma série de contradições que estão colocadas para a existência desses povos.

Será que existe prevenção ao suicídio? Não sei, talvez não. Alguns trabalhos que li dizem que a prevenção é não deixar ao alcance da pessoa os meios para o suicídio, então, se você tem um adolescente perturbado na sua casa, você não vai deixar facas, cordas e venenos ao alcance dele, mas vai tratar o caso individualmente.

Agora, quando se tem altos índices como esses da população indígena, vai se fazer o que? No Mato Grosso do Sul os jovens se enforcam com cadarço de tênis e não se tem como prevenir. Então, acho que não se trata de encontrar uma medicina preventiva, mas uma providência com políticas de prevenção da vida, da cultura dos povos, das escolhas de cada um. Mas o Estado não faz isso; ele é uma máquina de homogeneizar cidadãos que não oferece uma contrapartida.