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Justiça Federal rejeita pedido de reintegração de posse de território Guarani e Kaiowá

Sem mandado judicial, policiais militares despejaram Guarani Kaiowá de retomada no tekoha Laranjeira Nhanderu e prenderam três indígenas. Foto: povo Guarani e Kaiowá

Sem mandado judicial, policiais militares despejaram Guarani Kaiowá de retomada no tekoha Laranjeira Nhanderu e prenderam três indígenas. Foto: povo Guarani e Kaiowá

Por Maiara Dourado, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Na última segunda-feira (15), a Justiça Federal de Dourados, do Mato Grosso do Sul (MS), decidiu a favor do povo Guarani e Kaiowá e rejeitou o pedido de reintegração de posse da fazenda Inho, de propriedade de José Raul das Neves. A fazenda está localizada sobre o tekoha Laranjeira Nhanderu, em Rio Brilhante (MS).

A decisão [1] assegura ao povo Guarani e Kaiowá a posse da terra e suspende o processo até que se julgue o caso de repercussão geral no STF que pode definir o futuro das terras indígenas do país – o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 [2]. A ordem judicial usa como base a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e relator do processo, Edson Fachin, que determinou a suspensão de todas as ações que envolvam a demarcação de terras indígenas até o julgamento final do recurso.

A decisão assegura ao povo Guarani e Kaiowá a posse da terra e suspende o processo até que se julgue o caso de repercussão geral no STF

“Pela amplitude do tema admitido em repercussão geral, e as peculiaridades apresentadas pelo presente caso, a resolução a ser dada à presente demanda [de reintegração de posse] perpassa pelo que for definido no julgamento do RE 1.017.365”, afirmou, na decisão, Fábio Fischer, juiz da 2ª Vara Federal de Dourados.

O seguinte processo envolve o caso de reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina, e teve repercussão geral reconhecida pelo STF. Isso significa que o que for decidido neste julgamento implicará em todos os outros casos judiciais que envolvam o direito à terra dos povos indígenas do Brasil.

“A resolução a ser dada à presente demanda [de reintegração de posse] perpassa pelo que for definido no julgamento do RE 1.017.365”

Sede da fazenda Inho, retomada pelos Guarani e Kaiowá após despejo ilegal. Indígenas pedem mediação do MPF e da Funai. Foto: comunidade de Laranjeira Nhanderu

Sede da fazenda Inho, retomada pelos Guarani e Kaiowá após despejo ilegal. Indígenas pedem mediação do MPF e da Funai. Foto: comunidade de Laranjeira Nhanderu

O recurso, que volta a ser discutido na Suprema Corte no próximo dia 7 de junho, coloca em discussão o estabelecimento de um marco temporal que busca limitar o direito dos povos indígenas. Por essa tese entende-se que os indígenas só teriam direito às terras que estivessem sob suas posses no dia 5 de outubro de 1988 – promulgação da Constituição Federal -, ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada. 

Nesse sentido, a retomada do julgamento do RE se torna urgente, pois definirá não só o futuro da comunidade do tekoha Laranjeira Nhanderu, mas também o de todas as outras comunidades indígenas do país. No Mato Grosso do Sul, caso seja aprovada a tese do marco temporal, dezenas de comunidades indígenas sofrerão processos de reintegração de posse de forma imediata, podendo ocasionar mais despejos e o agravamento da situação de vulnerabilidade na qual se encontram as comunidades indígenas sul mato-grossenses.  

Competência e tutela de urgência

A sentença da 2ª Vara Federal de Dourados reconheceu, ainda, a competência da Justiça Federal para julgar o caso, e recusou a tutela de urgência com a qual se requeria a aplicação de ordem de reintegração de posse. Em um primeiro momento, o suposto proprietário da fazenda Inho recorreu à Justiça Estadual com o argumento de que a área não se tratava de Terra Indígena (TI), não havendo estudo antropológico que atestasse  sua tradicionalidade, nem demarcação da área em disputa.

Contudo, no entendimento do juiz, o direito indígena prescinde a demarcação formal das terras, não podendo ser uma condição para seu reconhecimento, o que torna o caso uma competência da Justiça Federal.  “A disputa por direitos indígenas não se limita à defesa da terra demarcada, mas à própria demarcação de espaços eventualmente ocupados de forma tradicional pelos povos indígenas, para que seja reconhecida, formalizada e assegurada a sua posse sobre a terra”, explica o juiz em sua decisão.

O direito indígena prescinde a demarcação formal das terras, não podendo ser uma condição para seu reconhecimento

Lideranças da comunidade relatam que, pela manhã, policiais militares chegaram ao local e ameaçam despejar os indígenas – mesmo sem ordem judicial. Foto: povo Guarani e Kaiowá

Lideranças da comunidade relatam que, pela manhã, policiais militares chegaram ao local e ameaçam despejar os indígenas – mesmo sem ordem judicial. Foto: povo Guarani e Kaiowá

Retomada Laranjeira Nhanderu

A fazenda sobreposta ao território tradicionalmente ocupado pelo povo Guarani e Kaiowá foi retomada pelos indígenas em março deste ano. Desde então, a comunidade vive sob constante ameaça de ataques ilegais [3] da Polícia Militar (PM), conduta cada vez mais recorrente no estado do Mato Grosso do Sul, e da qual foram vítimas, pela primeira vez, em fevereiro deste  ano.

Na ocasião [4], a PM retirou de forma violenta os indígenas da fazenda Inho sobreposta ao  tekoha Laranjeira Nhanderu. A ação da polícia foi feita sem ordem judicial e deixou pelo menos três pessoas feridas por bala de borracha. 

A comunidade vive sob constante ameaça de ataques ilegais da Polícia Militar (PM)

A área indígena invadida pela fazenda Inho é reivindicada, há anos, pelos Guarani e Kaiowá. Em 2008, foi criado um Grupo de Trabalho (GT) de identificação e delimitação pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a fim de comprovar a tradicionalidade da ocupação e determinar a extensão da TI.

O GT, contudo, só foi instituído após acordo firmado entre o Ministério Público Federal (MPF) e a Funai, em 2007, por meio de um Termo de Ajustamento de Condutas [5] (TAC). No TAC, as reivindicações territoriais foram reunidas em sete terras indígenas, conformadas pelas bacias dos rios, chamadas de “peguá” pelos Guarani e Kaiowá, estando o tekoha Laranjeira Nhanderu dentro da Terra Indígena (TI) Brilhante-peguá.

A área indígena invadida pela fazenda Inho é reivindicada, há anos, pelos Guarani e Kaiowá

A retomada estabelecida em 2011 na área de mata da Fazenda Santo Antônio, limítrofe à fazenda Inho, foi reconhecida como uma área de ocupação tradicional Guarani e Kaiowá por uma perícia antropológica, além de ser parte da área cuja demarcação é reivindicada pelos indígenas. Crédito: Tiago Miotto

Após 15 anos desde a assinatura do TAC, e 14 anos desde a instituição da portaria que criava o GT, o tekoha Laranjeira Nhanderu segue sem providência, deixando a comunidade exposta a ameaças do fazendeiro e abusos da PM.

A tradicionalidade da ocupação Guarani e Kaiowá pode ser comprovada pela autodemarcação apresentada em documentos diversos pela comunidade, bem como pela perícia antropológica realizada em 2013. A perícia constatou a tradicionalidade da ocupação indígena na fazenda vizinha , a fazenda Santo Antônio, também retomada pela comunidade Laranjeira Nhanderu, em 2011.

Naquele ano, em decorrência de um pedido de reintegração de posse do fazendeiro contra os indígenas, a Justiça Federal de Dourados (MS) determinou a realização de uma perícia antropológica acerca da tradicionalidade da ocupação indígena.

A perícia, concluída em 2013, reconheceu que a área é tradicionalmente ocupada pelos indígenas, embora não seja, ainda, demarcada. Nesse sentido, não há dúvida de que a fazenda Inho, bem como a fazenda Santo Antônio, são terras indígenas Guarani e Kaiowá.