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Brasil: reconheça os direitos territoriais dos povos indígenas

Manifestação indígena contra o marco temporal, em Brasília no dia 23 de junho, 2022. Foto: Hellen Loures/Cimi

Por Human Rights Watch

Brasil [1] não deveria impor um marco temporal arbitrário que restrinja o direito dos povos indígenas a seus territórios, disse, na última quarta-feira (12), a Human Rights Watch em carta [2] ao Advogado-Geral da União, Jorge Messias.

A Advocacia-Geral da União (AGU) deveria revisar imediatamente o nocivo parecer normativo que consolida a tese de que povos indígenas não podem obter o reconhecimento formal de suas terras se lá não estavam presentes em 5 de outubro de 1988—dia da promulgação da Constituição Federal—ou se não tinham nesta data uma controvérsia possessória de fato ou judicializada.

“O presidente Lula se comprometeu a defender os direitos dos povos indígenas durante sua campanha e depois de eleito”, disse Maria Laura Canineu [3], diretora da Human Rights Watch no Brasil. “Seu governo deveria cumprir essa promessa rejeitando, sem demora, a tese do marco temporal, endossada pelos governos Temer e Bolsonaro para arbitrariamente bloquear demarcações de terras indígenas”.

“Seu governo deveria cumprir essa promessa rejeitando, sem demora, a tese do marco temporal”

É uma falácia ruralista afirmar que o Supremo já praticou a chamada tese do "marco temporal" - Tiago Miotto (Cimi)

É uma falácia ruralista afirmar que o Supremo já praticou a chamada tese do “marco temporal” – Tiago Miotto (Cimi)

Entre os dias 24 e 28 de abril de 2023, milhares de indígenas devem se reunir no Acampamento Terra Livre [4] em Brasília, uma mobilização anual para reivindicar a proteção de seus direitos, inclusive a demarcação de seus territórios.

Em 2017, no governo de Michel Temer, a Advocacia-Geral da União adotou um parecer que, dentre outros aspectos, consolida o marco temporal de 1988. A implementação dessa tese tornaria impossível a demarcação para comunidades que foram expulsas do território antes da Constituição de 1988 ou que não possam comprovar sua presença ou conflito possessório nesta data. O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro [5] manteve essa tese e, na prática, suspendeu todas as demarcações de terras indígenas, travando processos que já aguardavam [6] conclusão há anos.

Procuradores da República alertaram [7] sobre a inconstitucionalidade do parecer da AGU, e o Supremo Tribunal Federal está examinando a legalidade do marco temporal. A corte suspendeu os efeitos do parecer em 2020 até chegar a uma decisão final, que terá repercussão geral e se aplicará a todos os casos.

A insegurança jurídica sobre os territórios indígenas os torna especialmente vulneráveis à invasão por redes criminosas envolvidas em garimpo, extração de madeira e grilagem de terras, alimentando os conflitos [8] e a violência. As invasões possessórias e outras incursões para explorar recursos naturais em terras indígenas aumentaram [9] 180% entre 2018 e 2021, segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

O novo Advogado-Geral da União, nomeado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, está revisando [10] os posicionamentos da AGU adotados durante as gestões anteriores. Ele deveria comunicar ao STF, imediatamente, uma opinião que rejeite o marco temporal e defenda os direitos dos povos indígenas, conforme contemplados na Constituição Federal e nos parâmetros internacionais endossados pelo Brasil, disse a Human Rights Watch.

Escolher um marco temporal arbitrário e deixar de reconhecer terras tradicionais reivindicadas após determinada data não estão em conformidade com os padrões internacionais. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, adotada com o apoio do Brasil, reconhece que os povos indígenas têm direito às terras, territórios e recursos que tradicionalmente possuem e ocupam ou que tenham de outra forma utilizado ou adquirido. Os Estados são obrigados a dar reconhecimento legal e proteção às terras tradicionais, incluindo aquelas que os povos indígenas foram forçados a deixar ou perderam de outra forma. A Corte Interamericana de Direitos Humanos também reconhece que o direito dos povos indígenas a suas terras tradicionais persiste enquanto “a conexão material, cultural ou espiritual” com a terra persistir.

A demarcação e a proteção de terras são fundamentais não apenas para a defesa dos direitos indígenas, mas são ainda referências nos esforços bem-sucedidos de conservação, disse a Human Rights Watch. Os territórios mantidos por povos indígenas ajudam [11] a efetivamente barrar o desmatamento. No Brasil e em outros países amazônicos, essas áreas registram taxas de desmatamento menores [12] em relação a áreas comparáveis. Também oferecem benefícios climáticos líquidos para o planeta, com estudos mostrando que as florestas em terras indígenas são importantes sumidouros de carbono [13] na Amazônia.

“Os povos indígenas enfrentaram quatro anos de ataques constantes a seus territórios”

Marcha Pataxó e Tupinambá por demarcação de terras e contra o marco temporal, em Brasília. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Marcha Pataxó e Tupinambá por demarcação de terras e contra o marco temporal, em Brasília. Foto: Tiago Miotto/Cimi

“Os povos indígenas enfrentaram quatro anos de ataques constantes a seus territórios por madeireiros, garimpeiros e outros invasores fortalecidos pelas ações e retórica hostis do governo Bolsonaro em relação aos direitos dos povos indígenas”, disse Canineu. “O governo Lula deveria apoiar os povos indígenas e retomar a demarcação e a proteção de seus territórios, conforme a Constituição”.