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Em diálogo com a representante do secretário-geral da ONU sobre Violência Contra as Crianças, jovem Kaiowá denuncia prisões e ações arbitrárias

Por Adi Spezia, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Como se preparam os Guarani e Kaiowá para os rituais sagrados e batalhas, o jovem Lucas Kaiowá se aprontou e denunciou ao Conselho de Direitos Humanos (CDH) da Organização das Nações Unidas (ONU) como ele e outras centenas de crianças do seu povo nasceram em uma zona de conflito, sobrevivendo à fome, sob barracos de lona, sem água potável e sob constantes ataques de fazendeiros e policiais.

Lucas falou no Diálogo Interativo com a representante especial do secretário-geral da ONU sobre Violência Contra as Crianças, Najat Maalla M’jid. O evento foi realizado na última quinta-feira (16) e faz parte do 52º período ordinário de sessões do Conselho de Direitos Humanos (CDH 52) [1] da ONU.

“Há exatamente uma semana, eu e outros companheiros fomos presos durante uma ação ilegal da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul”

Mãe e filha Guarani Kaiowá na retomada do Tekoha Laranjeira Nhanderu, realizada nesta sexta-feira (03/03). Foto: povo Guarani e Kaiowá

Mãe e filha Guarani Kaiowá na retomada do Tekoha Laranjeira Nhanderu, realizada nesta sexta-feira (03/03). Foto: povo Guarani e Kaiowá

“Há exatamente uma semana, eu e outros companheiros fomos presos durante uma ação ilegal da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul, que realizou a expulsão da nossa comunidade em Laranjeira Nhanderu, sem mandado judicial”, destacou o jovem Kaiowá.

Em sua fala, ele se refere ao despejo sem mandado judicial, realizado pelo batalhão de choque da Polícia Militar do estado de Mato Grosso do Sul (MS), em 3 de março deste ano, após indígenas Guarani e Kaiowá retomarem [2] uma fazenda localizada no território do tekoha Laranjeira Nhanderu, em Rio Brilhante (MS).

“A operação ilegal e truculenta da Polícia Militar ocorreu sem mandado judicial e executado por uma força policial estadual”

A operação ilegal e truculenta da Polícia Militar [3] “ocorreu – sem mandado judicial e executado por uma força policial estadual – de forma ilegal, burlando a competência da justiça federal e resultando na prisão desses três indígenas, que foram detidos para justificar a atuação ilegal da Polícia Militar nessa operação”, explicou o advogado da comunidade e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul, Anderson Santos.

Na ocasião, a relatora da ONU sobre Defensores de Direitos Humanos, Mary Lawlor, fez uso de suas redes sociais e alertou “estou recebendo informações preocupantes sobre ataques repetidos contra membros do povo indígena Guarani Kaiowá, incluindo defensores de direitos humanos em Rio Brilhante (Mato Grosso do Sul)”.

Com frequência, os Guarani e kaiowá no Mato Grosso do Sul enfrentam ações arbitrária [9]s e truculentas. Lucas – assim como outras lideranças já fizeram – [10], tornou a denunciar tais ações ao Conselho de Direitos Humanos. “Há cerca de um ano, a mesma Polícia Militar atacou nossa comunidade de Guapoy, matando um dos nossos e ferindo crianças e adolescentes na cabeça, nas mãos e no abdômen”, reforçou Lucas.

O Massacre de Guapoy [11] ficou marcado pela violenta ação da Polícia Militar do estado de Mato Grosso do Sul, em junho de 2022, que resultou no assassinato do indígena Vitor Fernandes [12] e deixou dezenas de feridos. À época, uma série de outros ataques igualmente protagonizados pela PM e fazendeiros da região de Naviraí (MS) ficaram ofuscados e subnotificados.

“A Polícia Militar atacou nossa comunidade de Guapoy, matando um dos nossos e ferindo crianças e adolescentes na cabeça, nas mãos e no abdômen”

Enterro de Vitor Guarani Kaiowa, em Guapoy, Amambai (MS). Foto: povos Guarani Kaiowa

Tamanha é a violência e impunidade sofrida que muitos jovens estão tirando suas próprias vidas, apontou Lucas, que acaba de completar a maioridade.

Direcionando-se a Najat Maalla M’jid, o jovem Kaiowá destacou que as ações em defesa das crianças os enchem de esperança, e “seguindo seu desejo, peço que as crianças indígenas também não fiquem para trás”.

“A Najat Maalla M’jid, o jovem Kaiowá pediu que as crianças indígenas também não fiquem para trás”

Dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e de secretarias estaduais de saúde registram a ocorrência de 148 suicídios de indígenas em 2021, segundo informações sistematizadas no relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2021 [13], publicado anualmente pelo Cimi. Os estados com mais casos foram Amazonas (51), Mato Grosso do Sul (35) e Roraima (13), lista o relatório.

Buscando trazer luz à triste e brutal realidade enfrentada [14] pelas crianças Guarani e Kaiowá, Lucas fez um apelo ao Conselho e às Nações Unidas, “peço que considerem visitar nossas comunidades, já que o Estado brasileiro não nos protege nem garante nossas terras tradicionais”.

“Peço que considerem visitar nossas comunidades, já que o Estado brasileiro não nos protege nem garante nossas terras tradicionais”

Lucas falou no Diálogo Interativo com a representante especial do secretário-geral da ONU sobre Violência Contra as Crianças, Najat Maalla M'jid. Foto: Cimi

Lucas falou no Diálogo Interativo com a representante especial do secretário-geral da ONU sobre Violência Contra as Crianças, Najat Maalla M’jid. Foto: Cimi

À representante especial sobre Violência Contra as Crianças, Najat Maalla M’jid, “peço que considere a produção de um relatório sobre a violência contra as crianças indígenas, no contexto da falta de acesso aos seus territórios tradicionais”, completou o jovem Kaiowá.

A importância deste relatório que Lucas solicita traz por base os dados que o Cimi – por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) – obteve da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) sobre as mortes de crianças indígenas de 0 a 5 anos de idade, mesmo que parciais. Os dados, que foram coletados pela secretaria em janeiro de 2022 e estão, provavelmente, defasados, revelam a ocorrência de 744 mortes de crianças indígenas de 0 a 5 anos de idade em 2021.

“Peço que considere a produção de um relatório sobre a violência contra as crianças indígenas, no contexto da falta de acesso aos seus territórios tradicionais”

Os estados com maior quantidade de mortes nesta faixa etária foram Amazonas (178), Roraima (149) e Mato Grosso (106). Apesar da provável defasagem dos dados relativos a 2021, a quantidade de óbitos de crianças só foi maior, na última década, nos anos de 2014 (785), 2019 (825) e 2020 (776). Todos os dados estão disponíveis no relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2021.

A brutalidade destes dados não inibiu o jovem Kaiowá, que antes de encerrar sua incidência junto a 52ª sessão do CDH, também deixou um recado: “para aqueles que nos matam, eu digo a vocês, nossa luta continua”.

“Para aqueles que nos matam, eu digo a vocês, nossa luta continua”

MPF avaliará ilegalidade da ação policial contra indígenas do tekoha Guapo'y. Foto: indígenas Guarani e Kaiowá

MPF avaliará ilegalidade da ação policial contra indígenas do tekoha Guapo’y. Foto: indígenas Guarani e Kaiowá

ONU e violência contra as crianças

No mesmo dia (16) da incidência de Lucas Kaiowá junto ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, a representante especial do secretário-geral sobre Violência Contra as Crianças, Najat Maalla M’jid, apresentou seu relatório [15] sobre “Violência Contra Crianças e o Ambiente Digital”, onde aborda formas de garantir um ambiente digital seguro e inclusivo para crianças, bem como avaliou esforços para ajudar menores afetados por conflitos armados.

Embora não tenha um recorte para “crianças indígenas”, o documento destaca [16] que as múltiplas crises globais aumentaram a vulnerabilidade de crianças. Os ataques por conta da aparência, peso, sexualidade, raça e etnia, bem como status socioeconômico, estão entre as principais violações abordadas no relatório.

“Os ataques por conta da aparência, peso, sexualidade, raça e etnia, bem como status socioeconômico, estão entre as principais violações abordadas no relatório”

Três dias antes, na segunda-feira (13), a representante especial do secretário-geral sobre Crianças e Conflitos Armados, Virginia Gamba, alertou o Conselho de Segurança da ONU [17] que há 24 mil violações graves aos direitos fundamentais das crianças, segundo dados registrados pela ONU em 2021, e que devem continuar crescendo. A sessão foi realizada às vésperas da marca de cinco anos da adoção da resolução que prevê a proteção infantil nas áreas em conflito.

Na oportunidade, Virginia explicou que o monitoramento tem mostrado que as crianças mais vulneráveis às graves violações são aquelas que não têm oportunidades de educação ou meios de subsistência, além das que estão em situação de pobreza e deslocamento, ou aquelas que têm alguma deficiência.

Embora neste monitoramento não esteja especificado um recorte para crianças indígenas, os critérios listados também as impactam, como denunciou o jovem Kaiowá, que motivou o pedido à representante especial do secretário-geral sobre Violência Contra as Crianças, Najat Maalla M’jid nesta sessão do Conselho de Direitos Humanos [1].

“Há 24 mil violações graves aos direitos fundamentais das crianças, segundo dados registrados pela ONU em 2021”

Preocupação com acesso a serviços básicos, como ônibus escolar para crianças, motivo aumento da ocupação. Foto: comunidade de Laranjeira Nhanderu

Preocupação com acesso a serviços básicos, como ônibus escolar para crianças, motivo aumento da ocupação. Foto: comunidade de Laranjeira Nhanderu

Confira o discurso na íntegra:

Mba’eichapa,

Distinta representante especial senhora Maalla M’jid, suas ações em defesa das crianças nos enchem de esperança. E seguindo seu desejo, peço que as crianças indígenas também não fiquem para trás.

Eu sou Lucas, um indígena do povo Kaiowá do Mato Grosso do Sul, Brasil, e como centenas de outras crianças do meu povo, nasci em uma zona de conflito, sobrevivendo à fome, debaixo de barracos de lona, sem água potável e sob constantes ataques de fazendeiros e policiais.

Há exatamente uma semana, que eu e outros companheiros fomos presos durante uma ação ilegal da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul, que realizou à expulsão da nossa comunidade em Laranjeira Nhanderu, sem mandado judicial.

Há cerca de um ano, a mesma Polícia Militar atacou nossa comunidade de Guapoy, matando um dos nossos e ferindo crianças e adolescentes na cabeça, nas mãos e no abdômen. Diante de tanta violência e impunidade, muitos de nossos jovens têm tirado suas vidas.

Mas para aqueles que nos matam, eu digo a vocês, nossa luta continua.

Por isso, peço que considerem visitar nossas comunidades, já que o Estado brasileiro não nos protege nem garante nossas terras tradicionais. Peço que considere a produção de um relatório sobre a violência contra as crianças indígenas, no contexto da falta de acesso aos seus territórios tradicionais.

Aguyje vete pe’eme.