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Com escalada de violência nos territórios, indígenas cobram conclusão do julgamento sobre demarcações de terras no STF

Lideranças de três estados do país – RJ, SP e MS – foram ao STF na tarde do dia 19 de agosto de 2022 para protocolar documento com o pedido de retomada e conclusão do julgamento do RE 1.017.365. Foto: Marina Oliveira/Cimi

Por Marina Oliveira, da Assessoria de Comunicação do Cimi

A longa espera por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca das demarcações de terras indígenas tem gerado graves consequências dentro dos territórios. Enquanto a Corte não julga o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 [1] – que definirá o futuro das Terras Indígenas (TI) de todo o país –, as vidas dos povos originários são diluídas e transformadas em sangue. Ser indígena significa lutar pelo território, pela manutenção de sua cultura, tradições e religião. Significa enfrentar uma batalha diária contra invasores dentro de suas próprias casas.

Por isso, povos indígenas de três estados do país – Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo – desembarcaram em Brasília (DF) no dia 15 de agosto para cobrar providências dos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo.

Ao longo de cinco dias – até o dia 19 de agosto –, os povos Guarani Kaiowá, Guarani Mbya, Guarani Nhandeva, Tupi-Guarani, Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe tiveram uma extensa agenda na capital federal, passando pelo STF, pela Câmara Federal, pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), pela 6ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF) e pela Defensoria Pública da União (DPU).

Em todos os locais foram protocolados documentos com relatos sobre o atual cenário dos territórios indígenas de todo o país e com o pedido da imediata retomada e conclusão do julgamento do processo sobre demarcações. Com repercussão geral, ele definirá uma diretriz para todas as decisões e medidas relativas ao tema.

As lideranças também participaram do lançamento do Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados 2021 [2], do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O evento ocorreu na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), na última quarta-feira (17).

 

Supremo Tribunal Federal (STF)

Nesta sexta-feira (19), as lideranças se deslocaram até o STF e protocolaram, nos gabinetes de todos os ministros da Corte, um documento com a solicitação da retomada do julgamento do processo de repercussão geral. Em texto, as lideranças não esconderam a angústia e a expectativa para que o caso seja encerrado.

“É público e notório que os povos indígenas do Brasil vivem mais um momento de extremos ataques contra seus membros e seus territórios em várias regiões do país, em nossas comunidades este cenário não é diferente. Além da ausência de proteção do Estado brasileiro aos nossos territórios, enfrentamos, muitas vezes sozinhos, os impactos da pandemia da Covid-19 e da violência praticada por garimpeiros, madeireiros, pecuaristas contra nossas comunidades, como ocorreu em Mato Grosso do Sul nos massacres de Caarapó [3] e Guapo’y [4] Amambai”, afirmam as lideranças.

“Além da ausência de proteção do Estado brasileiro aos nossos territórios, enfrentamos, muitas vezes sozinhos, os impactos da pandemia da Covid-19 e da violência por invasores”

Lideranças indígenas entregam no gabinete da ministra Carmen Lúcia, do STF, documento com o pedido de conclusão do julgamento do RE 1.017.365. Foto: Marina Oliveira/Cimi

Ao final do documento, os indígenas manifestaram apoio ao STF e clamaram pela garantia do direito à terra, aos seus costumes e tradições, “bem como o acesso à justiça, conforme estabelecido pela Carta Magna brasileira”. Os indígenas também aproveitaram a passagem pelo STF para entregar nos gabinetes dos ministros o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados 2021.

Presente no STF, a vice-cacica Neuza, do povo Guarani Nhandeva, de Paraty (RJ), falou ao Cimi sobre a necessidade de concluir, o mais rápido possível, o julgamento. “Viemos ao STF falar, mais uma vez, sobre os riscos que estamos correndo perante a tese do marco temporal, uma proposta absurda. Essa semana foi muito difícil para nós. Passamos os dias escutando os relatos de nossos parentes, como os do Guarani Kaiowá, a insegurança que eles vêm sofrendo. A demora desse julgamento significa a morte dos nossos povos”, afirmou.

“Passamos os dias escutando os relatos de nossos parentes, como os do Guarani Kaiowá, a insegurança que eles vêm sofrendo”

Povos Guarani Kaiowá, Guarani Nhandeva, Tupi-Guarani, Guarani Mbya, Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe em frente ao Supremo Tribunal Federal na tarde desta sexta-feira, 19 de agosto de 2022. Foto: Marina Oliveira/Cimi

Fabiano de Lima, do povo Tupi-Guarani, de Ubatuba (SP), também falou sobre o contexto de violência sofrido pelos povos indígenas de todo o país e reforçou que é preciso “enterrar de vez” a tese do marco temporal.

“Nossos territórios estão sendo invadidos e destruídos. Mas a gente vem lutando há muitos anos e pedimos o apoio também dos não-indígenas para que esse sistema político da morte pare”

“Nossos territórios estão sendo invadidos e destruídos. Mas a gente vem lutando há muitos anos e pedimos o apoio também dos não-indígenas para que esse sistema político da morte pare. Estivemos aqui em Brasília para denunciar esse contexto de violência e pedimos para que enterrem de vez o marco temporal. Que seja uma decisão favorável aos indígenas, os verdadeiros donos desse território”.

 

TI Nãnde Ru Marangatu: 17 anos sem resolução

Além da carta mencionada acima, os Guarani Kaiowá da TI Ñande Ru Marangatu, localizada em Mato Grosso do Sul, também protocolaram um documento relatando a escalada de violência enfrentada dentro do território. Aos ministros, as lideranças afirmaram que “a única possibilidade de resolução para os conflitos é a demarcação das terras indígenas tradicionalmente ocupadas” e que, por isso, deve ser revogada a medida liminar concedida pelo ministro Nelson Jobim no Mandado de Segurança 25.463.

“A única possibilidade de resolução para os conflitos é a demarcação das terras indígenas tradicionalmente ocupadas”

Lideranças Guarani Kaiowá fazem reza antes de iniciar audiência com a deputada Érika Kokay, na Câmara Federal, no dia 18 de agosto de 2022. Foto: Gabriel Paiva

Na decisão, proferida em julho de 2005, o então ministro do STF suspendeu o decreto que havia homologado a TI do povo Guarani Kaiowá em março daquele mesmo ano. A liminar continua vigente, e há quase duas décadas o povo vive em parte ínfima do território já reconhecido como seu.

“O processo em questão tramita nesta Corte há 17 anos, sem uma resolução definitiva, embora já haja o entendimento pacífico e consolidado em relação a inviabilidade do manejo de mandado de segurança para tratar de demarcação de terras indígenas. Nesse sentido, é a presente para requerer a revogação da medida liminar concedida pelo Min. Nelson Jobim, visto que trará mais segurança à nossa comunidade neste cenário de violências que nos assolam todos os dias”, afirmam as lideranças em documento.

Atualmente, os Guarani Kaiowá enfrentam a intrusão de fazendeiros, madeireiros, garimpeiros e da polícia militar de Mato Grosso do Sul dentro de seus territórios, que realizam “ataques covardes, utilizando-se de todo o aparato estatal para a repressão, inclusive helicópteros e armamento pesado, sem qualquer permissão judicial” – conforme mencionam em documento.

Câmara Federal

Um dia antes da ida ao STF, na quinta-feira (18), a deputada federal Erika Kokay (PT-DF) – em nome da Liderança da Minoria –, representantes da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas e da Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal receberam, na Câmara Federal, lideranças indígenas de três estados do país e representantes do Conselho Indigenista Missionário.

Os indígenas participaram de uma sessão de debates sobre o contexto de violência enfrentado dentro dos territórios, em especial no estado de Mato Grosso do Sul.  Estiveram presentes lideranças dos povos Guarani Kaiowá, Guarani Mbya, Guarani Nhandeva, Tupi-Guarani, Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe.

Durante a audiência, os indígenas protocolaram um documento que apresenta uma série de denúncias sobre as ameaças e perseguições sofridas por eles. Perante o grave contexto, as lideranças também pediram para que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgue, o quanto antes, o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 – que trata das demarcações dos territórios indígenas de todo o país.

“É permanente a tentativa de apropriação dos nossos corpos, da terra onde vivemos e dos recursos naturais que protegemos, a exemplo dos ataques diretos de garimpeiros, madeireiros e fazendeiros. Não bastasse isso, tem sido recorrente a apresentação de propostas legislativas e atos do Executivo que visam flexibilizar os nossos direitos”, diz um trecho do documento protocolado na Câmara Federal – lido, inclusive, pela deputada Erika Kokay durante a audiência.

“É permanente a tentativa de apropriação dos nossos corpos, da terra onde vivemos e dos recursos naturais que protegemos, a exemplo dos ataques diretos de garimpeiros, madeireiros e fazendeiros”

Lideranças indígenas e o Conselho Indigenista Missionário participam de sessão com a deputada Érika Kokay, na Câmara Federal. A audiência ocorreu na manhã do dia 18 de agosto de 2022. Foto: Gabriel Paiva

No mesmo texto, as lideranças lembraram dos frequentes ataques e perseguições no estado de Mato Grosso do Sul, como os Massacres de Caarapó e de Guapo’y. “Temos perdido nossos parentes, a exemplo do jovem indígena Alex Recarte Vasques Lopes [5], de 18 anos, do povo Guarani Kaiowá, assassinado em 21 de maio de 2022. Muitos de nós estão ameaçados de morte”. Na sequência, as lideranças solicitaram a presença e atuação de deputados federais e senadores em Mato Grosso do Sul para que o cenário de violência no estado seja amenizado.

Por fim, os indígenas também pediram que o julgamento do caso de repercussão geral sobre demarcações de terras indígenas seja concluído pelo STF e que sejam tomadas medidas efetivas de proteção dos territórios, comunidades e dos indígenas ameaçados de morte.

“Compreendemos que a conclusão do julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.017.365 e a pacificação do entendimento do STF em relação à posse das terras ocupadas tradicionalmente por nós, há séculos, em consonância com a vontade firmada pelos Constituintes em 1987/1988, pode vir a contribuir com a redução das violências que vitimam nossas crianças e nossa cultura”, reivindicam os indígenas.