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Presidente do Cimi denuncia política anti-indígena do governo na ONU e expõe contradições do discurso de Damares Alves

Por Adi Spezia, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Abrindo a série de sete intervenções de organizações indigenistas e lideranças indígenas na 49ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos (CDH49) das Nações Unidas (ONU), Dom Roque Paloschi, arcebispo de Porto Velho, Rondônia, e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), se pronunciou no Diálogo Geral na manhã desta terça-feira (8). A Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, participou da atividade, que tem por objetivo atualizar o Alto Comissariado sobre a situação de direitos humanos em vários países, inclusive o Brasil.

O presidente do Cimi apresentou um retrato da atual situação dos povos originários no Brasil, agravada pela crise sanitária da Covid-19, e o aumento das invasões dos territórios indígenas por grileiros, garimpeiros, madeireiros e outros invasores. O contexto é marcado pelo alto número de mortes ocorridas em decorrência da má gestão do enfrentamento à pandemia, da desinformação e da negligência do governo federal.

“A atual política indigenista e ambiental do Brasil é totalmente diferente do que a ministra Damares Alves afirmou em seu discurso”

“A atual política indigenista e ambiental do Brasil é totalmente diferente do que a ministra Damares Alves afirmou em seu discurso”, assegura o presidente do Cimi já no início de seu pronunciamento. A ministra de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, representou o Estado brasileiro no Segmento de Alto Nível, que abriu a 49ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, no dia 28 de fevereiro deste ano.

Ao expor as contradições do discurso do governo brasileiro sobre a vacinação dos povos indígenas, Dom Roque esclarece que a imunização “é priorizada apenas nos territórios demarcados, contrastando com uma política de não demarcar nenhum território”.

Segundo monitoramento realizado pela Articulação do Povos indígenas do Brasil (Apib) [1], mais de 68 mil indígenas foram contaminados pela Covid-19, e pelo menos 1.288 morreram até fevereiro deste ano. Até janeiro de 2022, no entanto, apenas 47% da população que vive em terras indígenas havia sido imunizada com a segunda dose [2] da vacina.

“A vacinação dos povos indígenas, é priorizada apenas nos territórios demarcados, contrastando com uma política de não demarcar nenhum território”

Ato em homenagem às primeiras cem mil vítimas da covid-19 no Brasil, em Copacabana, Rio de Janeiro. Foto: Rio de Paz/divulgação

Ato em homenagem às primeiras cem mil vítimas da Covid-19 no Brasil, em Copacabana, Rio de Janeiro. Foto: Rio de Paz/divulgação

A inércia do atual governo em adotar medidas de proteção aos povos originários frente à pandemia fez com que organizações indígenas, indigenistas e partidos políticos entrassem com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709 junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), buscando garantir o direito fundamental à saúde dos povos indígenas durante a pandemia da Covid-19.

A decisão determinou à atual gestão do governo a instalação de barreiras sanitárias, criação de uma sala de situação, a retirada de invasores dos territórios, a prestação de serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) a todos os indígenas, bem como a elaboração de um plano de enfrentamento à Covid-19, apresentado quase dois anos após a decisão da Suprema Corte.

“A inércia do atual governo em adotar medidas de proteção aos povos originários frente à pandemia fez com que organizações indígenas, indigenistas e partidos políticos entrassem com a ADPF 709”

No entanto, os indígenas seguem denunciando a omissão do governo federal no cumprimento das determinações. Sem a devida proteção aos territórios, as invasões seguem aumentando, inclusive com loteamento em Terras Indígenas. Por sua vez, as barreiras sanitárias foram medidas adotadas pelos próprios indígenas [3], na maioria dos casos sem apoio do governo [4].

Quanto à vacinação, a ministra Damares afirmou que “85% da população indígena foi vacinada”. Na avaliação do Cimi, essa contagem é distorcida, sob o critério equivocado de indígenas aldeados, ou seja, aqueles que vivem nos territórios demarcados, ignorando que seu próprio governo paralisou o processo de demarcações e os indígenas em contextos urbanos. “Na verdade, o governo vem promovendo um apagão de dados sobre a Covid-19 e não pode dar certeza da porcentagem apontada”, destacou a entidade em Nota de Repúdio [5] divulgada no dia 28 de fevereiro.

“Na verdade, o governo vem promovendo um apagão de dados sobre a Covid-19 e não pode dar certeza da porcentagem apontada”

Foto: Michael Dantas / AFP

Foto: Michael Dantas / AFP

Ao se referir à proteção da Amazônia e dos povos que vivem na floresta, Damares diz que “o presidente Bolsonaro está realizando o maior programa de regularização fundiária da história do Brasil”.

“A chamada ‘regularização fundiária’ é um estímulo ao desmatamento e à invasão dos territórios tradicionais, que cresceu 137% entre 2018 e 2020”, esclarece Dom Roque ao Conselho de Direitos Humanos. Trata-se, na verdade, de titulação privada de invasores de terras protegidas e de territórios indígenas, o que vem estimulando ainda mais o desmatamento na Amazônia e demais biomas.

É importante lembrar que em 2020 os casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” aumentaram, em relação ao já alarmante número que havia sido registrado no primeiro ano do governo Bolsonaro. “Tal política é acompanhada de projetos de lei e regulamentações que afirmam o marco temporal”, denunciou Dom Roque na CDH49.

“A política anti-indígena do atual governo é acompanhada de projetos de lei e regulamentações que afirmam o marco temporal”

Segundo o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2020 [6], publicado anualmente pelo Cimi, foram 263 casos do tipo registrados em 2020 – um aumento em relação a 2019, quando foram contabilizados 256 casos, e um acréscimo de 137% em relação a 2018, quando haviam sido identificados 111 casos. Este foi o quinto aumento consecutivo registrado nos casos do tipo, que em 2020 atingiram pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados.

Além de não demarcar nenhuma terra indígena, o governo Bolsonaro tem adotado um conjunto de medidas, projetos de lei, decretos e instruções normativas. Entre eles, proposições legislativas como o Projeto de Lei (PL) 191/2020 e o PL 490/2007 [7] e medidas administrativas como a Instrução Normativa (IN) 09/2020 [8], da Fundação Nacional do Índio (Funai), e a IN 01/2021 [9], publicada conjuntamente entre a Funai e o Ibama.

“Além de não demarcar nenhuma terra indígena, o governo Bolsonaro tem adotado um conjunto de medidas, projetos de lei, decretos e instruções normativas”

Os povos indígenas reafirmam sua posição contra o marco temporal. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Os povos indígenas reafirmam sua posição contra o marco temporal. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Também inclui nesta lista o decreto que estabelece o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal (Pró-Mape), que estimula a expansão da mineração sobre territórios indígenas, com sérias consequências para a saúde indígena.

“O Pró-Mape prevê ainda um incentivo ao garimpo na região amazônica, em um momento de evidente expansão da atividade sobre os territórios indígenas com seríssimas consequências para a saúde e a vida dos povos indígenas”, lista a nota do Cimi [5].

O discurso do Estado brasileiro na 49ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU “é uma versão descolada da realidade”, conclui o presidente do Cimi, “que não pode prosperar neste fórum multilateral de direitos humanos”.

Confira o discurso de Dom Roque, na íntegra:

Senhora Alta Comissária,

A atual política indigenista e ambiental do Brasil é totalmente diferente do que a ministra Damares Alves afirmou em seu discurso, durante o Seguimento de Alto Nível.

A vacinação dos povos indígenas é priorizada apenas nos territórios demarcados, contrastando com uma política de não demarcar nenhum território. Mais de 68 mil indígenas foram contaminados pela Covid-19, e pelo menos 1.288 morreram até fevereiro deste ano.

A chamada “regularização fundiária” é um estímulo ao desmatamento e à invasão dos territórios tradicionais, que cresceu 137% entre 2018 e 2020. Tal política é acompanhada de projetos de lei e regulamentação que afirmam o marco temporal.

O programa Pró-Mape estimula a expansão da mineração sobre territórios indígenas, com sérias consequências para a saúde indígena.

A versão descolada da realidade exposta não pode prosperar neste fórum multilateral de direitos humanos.

Muito obrigado.