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Conselheira da ONU alerta para risco de atrocidades contra povos indígenas no Brasil

Indígenas Guarani e Kaiowá reunidos após massacre de Caarapó, em 2016, no Mato Grosso do Sul. Foto: Ruy Sposati/Cimi

Indígenas Guarani e Kaiowá reunidos após massacre de Caarapó, em 2016, no Mato Grosso do Sul. Foto: Ruy Sposati/Cimi

Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi

A Conselheira Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Prevenção do Genocídio, Wairimu Nderitu, manifestou preocupação inédita com a situação os povos indígenas no Brasil. A manifestação ocorreu durante uma atividade da 47ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), que ocorre em Genebra, na Suíça, entre os dias 21 de junho e 13 de julho de 2021.

Na mesma atividade, uma mesa de diálogo interativo [1] realizada no dia 28 de junho, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) também aproveitou seu espaço de fala para chamar atenção para a gravidade da situação dos povos indígenas no Brasil.

Citando a série de ataques contra os povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, e a falta de providências para garantir a segurança dos povos Yanomami e Ye’kuana, em Roraima, o Cimi afirmou que a “falta de vontade e/ou incapacidade de promover reparação” aos povos indígenas vítimas de violência sistemática no Brasil “pode implicar numa transferência de competência para o Tribunal Penal Internacional”.

Entre os casos mencionados pelo Cimi está o massacre de Caarapó [2], que completou cinco anos [3] no dia 14 de junho de 2021 sem que nenhum dos responsáveis pelo ataque tenham sido punidos. O Cimi alertou que o massacre, que vitimou o agente de saúde indígena Clodiodi Aquile de Sousa, de 26 anos, e deixou outros seis indígenas feridos por armas de fogo, forma parte de um conjunto de ações violentas organizadas contra os indígenas na região.

“Um total de 24 ataques, cuidadosamente estudados, configuram eventos não isolados, aleatórios ou desconectados. Ao contrário, eles perfazem juntos uma tática organizada, com a tolerância do Estado, nos termos do artigo 7.1 do Estatuto de Roma e de sólida jurisprudência, como o Ministério Público Federal [MPF] já alertou a justiça federal”, sustentou o representante do Cimi no diálogo, Paulo Lugon Arantes.

Em relação aos povos Yanomami e Ye’kuana, o Cimi chamou atenção para o fato de que a invasão à Terra Indígena (TI) Yanomami – que, segundo a Hutukara Associação Yanomami (HAY), já reúne mais de 20 mil garimpeiros ilegais – não tem sido devidamente coibida pelo Estado brasileiro e conta com a negligência do governo federal, apesar das determinações do Supremo Tribunal Federal (STF) [4] para que se garanta a segurança dos indígenas e a retirada dos invasores.

“O governo federal é incapaz ou não está disposto a cumprir a ordem da Suprema Corte, que determinou a retirada dos invasores não-indígenas”, denunciou o Cimi, chamando atenção também para a ameaça que a presença dos invasores traz aos indígenas em isolamento voluntário que vivem na TI Yanomami.

“Agora a ONU abriu um alerta de atrocidades oficial para o Brasil”

Manifestação inédita sobre o Brasil

Na abertura do diálogo interativo, a conselheira especial da ONU chamou atenção [5] para a gravidade da situação dos povos indígenas no Brasil – algo até então inédito. É a primeira vez que o Brasil é diretamente citado em relação à prevenção do genocídio por uma representante da ONU.

“Na região das Américas, estou particularmente preocupada com a situação dos povos indígenas. No Brasil, Equador e outros países, eu peço aos governos para proteger comunidades em risco e garantir justiça para crimes cometidos”, alertou Nderitu.

A menção ao Brasil veio durante a apresentação do relatório anual da conselheira especial da ONU para a prevenção do genocídio e, na avaliação de Paulo Lugon Arantes, assessor internacional do Cimi, é muito significativa.

“Essa manifestação é um alerta grave, o fato de ela ter singularizado o Brasil como um dos países onde há preocupação com o risco de atrocidades, genocídio e crimes contra a humanidade, no caso dos povos indígenas. Isso significa que agora a ONU abriu um alerta de atrocidades oficial para o Brasil”, analisa.

“Enquanto a circulação de garimpeiros armados permanece intensa e desobstruída, as comunidades Yanomami e Ye’kwana seguem sob permanente ameaça dos contra suas vidas”

Resposta do governo

Citado pela relatora e pelo Cimi, a representação do Brasil na ONU exerceu o direito de resposta e garantiu que o país está “disposto, capaz e diligente na busca por prevenção e justiça, em concordância com a legislação e nossas obrigações nacionais e internacionais”.

A representação do Itamaraty também afirmou que, no caso de Caarapó, “cinco fazendeiros atualmente enfrentam processos criminais pela acusação de grupos armados, homicídio, lesões corporais e outros crimes”.

A lenta tramitação do caso na justiça brasileira, entretanto, já foi objeto de manifestação do MPF [6] – autor da denúncia contra os fazendeiros – à Justiça Federal de Dourados, responsável pelo processo.

“O crime apurado não é complexo e que ofereceu denúncia logo após os fatos, em 2016. Até o presente momento, ainda não foi iniciada a instrução probatória da fase da pronúncia”, alertou o MPF, em petição de maio de 2021.

No documento, o MPF também cita um estudo do Núcleo de Direitos Humanos da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), coordenado pela professora Fernanda Frizzo Bragato, que enquadra a série de ataques violentos e sistemáticos contra os povos Guarani e Kaiowá como crimes contra a humanidade.

Em relação ao povo Yanomami, a representação do governo brasileiro citou a decisão unânime do STF e garantiu que “o Estado deve implementar esforços para proteger sua integridade física e territorial”.

Na TI Yanomami, desde pelo menos o mês de maio, ataques armados se sucedem e já causaram a morte de duas crianças, [7] que se afogaram após fugir de uma das investidas de garimpeiros armados contra a aldeia Palimiú. O ataque armado mais recente contra os Yanomami, registrado pela HAY em ofício, ocorreu em 17 de junho, na mesma região.

“Enquanto a circulação de garimpeiros armados permanece intensa e desobstruída, as comunidades Yanomami e Ye’kwana seguem sob permanente ameaça dos contra suas vidas”, relata o documento [8].

As ações do governo federal são criticadas por terem sido até aqui pontuais e ineficazes. O próprio relator do caso Yanomami no STF, o ministro Luís Roberto Barroso, registrou insatisfação com a resposta prática às determinações da Corte.

“Registro com desalento o fato de que as Forças Armadas brasileiras não tenham recursos para apoiar uma operação determinada pelo Poder Judiciário para impedir o massacre de populações indígenas”, declarou Barroso numa das decisões do caso [9].

Confira a íntegra da manifestação do Cimi:

47ª Sessão Regular do Conselho de Direitos Humanos
Item 3: Diálogo interativo com a Conselheira Especial para a Prevenção do Genocídio

Declaração oral do Conselho Indigenista Missionário – Cimi

Sra. Nderitu,

Agradecemos ao seu escritório por fornecer padrões valiosos e expertise na prevenção do genocídio. O Cimi, em conjunto com Universidades e o Ministério Público Federal, tem aplicado os parâmetros de seu gabinete, no âmbito político e jurídico, em casos que indicam altos riscos de genocídio e outras atrocidades contra populações indígenas.

Por exemplo, os crimes cometidos em Caarapó, em 2016, consistem em um ataque sistemático contra os povos Kaiowá e Guarani e atingem, no mínimo, o limiar de crimes contra a humanidade. Um total de 24 ataques, cuidadosamente estudados, configuram eventos não isolados, aleatórios ou desconectados. Ao contrário, eles perfazem juntos uma tática organizada, com a tolerância do Estado, nos termos do artigo 7.1 do Estatuto de Roma e de sólida jurisprudência, como o Ministério Público Federal já alertou a justiça federal.

Igualmente grave é a situação dos povos Yanomami e Ye’kuana, sistematicamente atacados por garimpeiros ilegais em seu território, que também ameaçam povos indígenas em situação de isolamento voluntário. O governo federal é incapaz ou não está disposto a cumprir a ordem da Suprema Corte, que determinou a retirada dos invasores não-indígenas.

Essa falta de vontade e/ou incapacidade de promover reparação pode implicar numa transferência de competência para o Tribunal Penal Internacional.

Muito obrigado.

No dia 30 de junho, ainda no contexto das atividades da 47ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Cimi também participou do painel [10] sobre direitos humanos de pessoas idosas no contexto das mudanças climáticas. Clique aqui [11] para ler a manifestação do Cimi no painel.

Atualizado às 18:13 do dia 07/07/2021