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Artigo: a nova Instrução Normativa do genocídio e da destruição das florestas

Garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku, em Jacareacanga (PA), em setembro de 2020. Foto: Marizilda Cruppe/Amazônia Real/Amazon Watch

Garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku, em Jacareacanga (PA), em setembro de 2020. Foto: Marizilda Cruppe/Amazônia Real/Amazon Watch

Por Roberto Antonio Liebgott, Cimi Regional Sul

A Instrução Normativa 01/2021, publicada em conjunto, nesta semana, pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), cria as condições para que organizações indígenas ou organizações mistas – constituídas entre indígenas e não indígenas – possam explorar economicamente as terras tradicionais.

Trata-se de uma medida que compromete a vida e o futuro dos povos e de seus territórios sob o verniz da observância às leis ambientais e ao que determina a Constituição Federal sobre o usufruto exclusivo das Terras Indígenas. De tal modo, a IN 01/2021 se refere também ao licenciamento ambiental, muito embora, como todos sabem, o Ibama vem sendo sucateado e usado pelo privatismo ruralista, minerador e desmatador tanto quanto a Funai.

A IN 01/2021 é mais perversa do que a simples intenção de promover o arrendamento disfarçado. Inclusive, quanto a isso, na IN 01/2021 está proibida essa prática e, de tal forma, o presidente da Funai, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier, a retira do rol de possibilidades aparentes, assim como a exploração hídrica e do subsolo, dando uma roupagem de legalidade para a medida que extravasa a controvérsia e, numa análise atenta, mostra toda sua ilegalidade.

Numa descarada tentativa de driblar a Constituição, o presidente da Funai cria agora uma nova modalidade, bastante perniciosa, enganosa, que são as tais organizações mistas. Um novo jeito de se invadir e esbulhar as terras indígenas, se apropriar do bem público. A partir delas se desenvolverá – se não houver atenção e cuidado por parte dos povos – todo tipo de exploração dentro das áreas indígenas e licença para depredar o meio ambiente.

Cabe então apenas uma conclusão: o arrendamento é substituído pela possibilidade de haver exploração pelas organizações mistas, que são, na prática, mecanismos (ou uma ferramenta) muito mais eficazes e, possivelmente, lucrativos na lógica dos exploradores. Vetar o arrendamento, já proibido pela Constituição, por uma Instrução Normativa, é a distração para a prática do arrendamento, mas em um outro formato. A ilegalidade concreta é diluída na interpretação.

A IN 01/2021 visa retirar o guizo do gato: o arrendamento vinha sendo praticado em algumas comunidades, de forma ilegal, visando a exploração agrícola e da pecuária, sendo denunciado e combatido. Quando o presidente da Funai veta o arrendamento na IN 01/2021, cabe uma pergunta: por que ele “veta” uma prática já ilegal, proibida pela legislação vigente? É como mágico que concentra a atenção do espectador em uma das mãos e faz o truque acontecer com a outra.

Por intermédio de uma Instrução Normativa, a Funai, um órgão de terceiro escalão, tenta destruir trecho de artigo da Constituição Federal promovendo a invasão deliberada com o auxílio das estruturas do Estado

Basta que garimpeiros, madeireiros e fazendeiros aliciem alguns indígenas, convencendo-os a criar uma associação mista e, a partir de então, não haverá nenhum tipo de contenção ou limite. Se os indígenas autorizam tal prática dentro de seus territórios, a partir de organizações mistas, e essa autorização, aparentemente, e apenas aparentemente, não viola as leis que protegem seus territórios, quem poderá questionar?

Notem a seriedade dessa medida. Por intermédio de uma Instrução Normativa, a Funai, um órgão de terceiro escalão, tenta destruir trecho de artigo da Constituição Federal, que trata do usufruto exclusivo das terras pelos povos indígenas, promovendo a invasão deliberada com o auxílio das estruturas do Estado. A atual gestão da Funai o faz construindo uma narrativa com portarias, instruções e normas de que não promove invasões e, ao contrário, está tirando os indígenas da pobreza e tornando-os “mais civilizados”, como disse certa vez o presidente Jair Bolsonaro.

Imaginem a quantidade de conflitos dentro das comunidades e de indígenas contra não indígenas, que estarão autorizados a entrar nas aldeias, com um acordo debaixo do braço, referendado pelo órgão indigenista, para nestes ambientes sociais explorar oportunidades de negócio. Ao mesmo tempo, as organizações mistas competirão com as organizações sociais dos povos. A IN 01/2021 afeta a gestão territorial e potencializa a criação de poderes pérfidos, baseados na ambição, no seio das comunidades.

Terras e florestas, especialmente na Amazônia, que se encontram hoje preservadas, serão, em poucos anos, totalmente destruídas

Dada toda a experiência acumulada por interações dessa natureza na história, é possível imaginar as dissociações a serem geradas, contaminação das pessoas e do meio ambiente. E outro detalhe: se poderá explorar, ao mesmo tempo, garimpo, madeira, pesca, biodiversidade, criar boi, plantar soja. Podendo ocorrer tudo ao mesmo tempo.

Visando a conversão dos territórios tradicionais em balcão de negócios, somando a isso a Instrução Normativa 09/2020, que regulariza propriedades privadas sobre Terras Indígenas, a Presidência da Funai patrocina também uma campanha contra a vida e a existência dos povos indígenas. É certo que, ao fim e ao cabo, essas instruções visam a desterritorialização paulatina e sistemática destes povos.

A IN 01/2021 é a medida mais grave e avassaladora adotada pelo governo Bolsonaro contra os povos indígenas. Podemos dizer que a instrução é uma das mais preocupantes das últimas décadas. A partir dela, se demonstra a efetiva prática do genocídio silencioso, não mais pela omissão e negligência, mas por ação premeditada e planejada do governo Bolsonaro.

Terras e florestas, especialmente na Amazônia, que se encontram hoje preservadas, serão, em poucos anos, totalmente destruídas. Seus povos, pressionados pela avalanche de conflitos e depredação de seus territórios gerados pelas invasões autorizadas e promessa de dinheiro fácil. Não se trata de previsão do futuro. Isso já ocorreu.

É preciso que os povos indígenas se ergam contra mais uma arbitrariedade, parte de um plano macabro, de médio e longo prazo, de usurpação das terras tradicionais e da subtração da população indígena visando incorporá-la à sociedade nacional sem suas identidades e especificidades. Também se faz necessária a atuação do Ministério Público Federal (MPF) e dos organismos internacionais de proteção aos direitos dos povos indígenas.