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Os indígenas e o extenuante trabalho na colheita de maçãs no Sul do Brasil

Indígenas na safra da maçã. Foto: Paola de Oliveira/Extra Classe

Indígenas na safra da maçã. Foto: Paola de Oliveira/Extra Classe

Por Roberto Antonio Liebgott, coordenador do Cimi Regional Sul, para o portal Desacato [1]

O cultivo da maçã, fruta típica de pequenos pomares da Ásia e Europa, foi trazida para a América pelos colonizadores e, desde então, passou a ser muito plantada nas regiões mais frias.

O consumo era familiar ou comunitário e sua comercialização passou a ser realizada em pequenos comércios ou feiras. Aliás, essa era uma importante característica da produção de maçãs, ou seja, ela sempre foi realizada por pequenos plantadores.

Nos últimos 30 anos essa característica perdeu força e seu plantio, cultivo e comercialização despertou o interesse de grandes empresas, que monopolizaram a terra e a produção. Os pequenos agricultores, neste contexto, acabaram vendendo ou concedendo, através do arrendamento, suas propriedades às empresas que, por sua vez, concentraram, sob seus domínios, milhares de hectares de terras nas serras do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

A colheita da maçã, quando feita em pequenas plantações, tinha como lógica auxiliar no autossustento familiar, ou seja, a família dava conta de plantar, cuidar dos tratos culturais, realizar a colheita e a seleção das frutas para a venda, ampliando assim seus rendimentos financeiros.

A atividade econômica, a partir do cultivo da maçã, depende basicamente do trabalho manual. Exige força física prolongada durante dias, semanas ou meses. Atualmente as empresas preparam a terra, plantam as mudas, dedicam-se aos tratos culturais para o desenvolvimento das plantas até a floração e surgimento dos frutos. Esse processo exige uma conjunção de fatores, dentre eles o uso intensivo e contínuo de agrotóxicos, associado ao trabalho manual.

As empresas, para obterem êxito na colheita e lucro na comercialização das frutas, necessitam de mão de obra barata. Mas esta, em geral, não se encontra disponível na região dos plantios – municípios onde estão localizados os pomares e que chegam a ter mais de 5 milhões de árvores – e, portanto, os trabalhadores precisam ser recrutados em lugares longínquos.

Para o acolhimento desses trabalhadores os empresários precisam, nas gigantescas aéreas de cultivo, de estruturas equipadas com alojamentos, alimentação, água e recursos financeiros para o pagamento de salários, com trabalhadores devidamente registrados ou com contratos temporários de trabalho estabelecidos.

Houve, ao longo das últimas décadas, uma série de denúncias junto ao Ministério Púbico do Trabalho (MPT), informando que as empresas não forneciam alojamentos adequados aos trabalhadores e que estes viviam em condições insalubres. Também houve denúncias acerca da existência de tratamento degradante, análogo à escravidão, pois não se respeitavam às normas trabalhistas, especialmente quanto ao contrato de trabalho, pagamento de salários, cumprimento de carga horária e não eram assegurados os intervalos ao descanso, repouso, lazer e alimentação.

Corroborando com essas denúncias, destaco duas ações realizadas por uma força tarefa coordenada pelo Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul. Uma foi realizada no dia 12 de maio de 2017, onde quatro indígenas foram encontrados trabalhando em situação semelhante à escravidão, em Caxias do Sul. A outra aconteceu no dia 22 de novembro de 2012, onde foram libertados 41 indígenas Kaingang, entre os quais 11 eram menores de 18 anos. O grupo trabalhava em condições análogas à escravidão, em Itaimbezinho, distrito do Município de Bom Jesus, RS.

Os trabalhos nos pomares são preponderantemente masculinos, dado que exige esforço físico prolongado e exaustivo. Há informações de que no período da colheita, os homens chegam a trabalhar por mais de 12 horas, com apenas um intervalo para o almoço.

Nas últimas décadas, em função da falta de mão de obra local, os empresários passaram a adotar o modelo de contratação a distância, através da intermediação de um “gato”, ou seja, de um ou vários indivíduos que exercem a tarefa de arregimentar pessoas para se deslocarem até as regiões de colheita.

Eles fazem contato, no caso dos indígenas, com as lideranças de comunidades ou se deslocam para as aldeias onde as famílias vivem em situação de vulnerabilidade econômica, sanitária e/ou social. Lá eles oferecem, aos homens, um trabalho remunerado como uma alternativa de renda futura.

Depois de arregimentar um contingente grande de trabalhadores, contratam-se empresas de ônibus que realizam o transporte até os pomares, deixando-os com a promessa de retorno ao final da colheita – do final de novembro ao início de maio -, geralmente cinco meses depois da chegada.

Essas pessoas, removidas de suas áreas de origem, geralmente muito distantes, como o Mato Grosso do Sul, ficam sem nenhuma alternativa de regresso, caso não estejam satisfeitas com o trabalho ou com as condições de vida a que foram submetidas.

Vale ressaltar que, em geral, os trabalhadores indígenas acabam todos alojados sob os mesmos espaços físicos, embora sejam pessoas de povos distintos, com culturas e práticas diferentes umas das outras, o que, não raras as vezes, ocasionam conflitos, desavenças, brigas e até mortes.

Há também denúncias de consumo excessivo de bebidas alcoólicas e de adoecimento físico e mental, mas sem o devido acompanhamento médico ou psiquiátrico. O Cimi Sul, ao longo dos anos, vem denunciando a existência de trabalho escravo na colheita de maçãs. Também se manifestou sobre essa problemática e considera que os trabalhadores indígenas estão sendo utilizados como mão de obra barata, ou seja, submetidos a uma forma moderna de escravidão.

As informações obtidas pelo Cimi Sul, junto às comunidades indígenas, indicam que são mais de 13 mil trabalhadores indígenas nos pomares de maçãs. Eles são oriundos de áreas Kaingang do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e acrescidos por um contingente enorme de pessoas dos povos Terena e Guarani-Kaiowá, de Mato Grosso do Sul. Os indígenas chegam a trabalhar de forma exaustiva – mais de 12 horas por dia – e recebem, em geral, em torno de um salário mínimo mensal.

No entender do Cimi, essa situação ocorre em função da exploração descabida e gananciosa dos empresários e, no caso dos indígenas, eles se submetem a essas condições porque nas regiões onde vivem não há políticas fundiárias, ou seja, as terras não foram demarcadas e suas condições de vida são de insegurança sanitária, alimentar e jurídica. Em geral são pessoas que habitam em acampamentos de beira de estradas ou em terras degradadas.

Para o Cimi, o trabalho na colheita de maçãs, ou de outros produtos, somam-se as mais variadas formas de violências contra as pessoas, num contexto político onde os dirigentes de Estado dão as costas aos povos originários e negam-lhes os direitos constitucionais à terra, à diferença e aos seus modos de vida.

Os povos e comunidades se submetem a essa condição porque no lugar onde vivem lhes tiraram quase tudo e, portanto, em períodos do ano são forçados a migrar em busca de algum tipo de trabalho para, com ele, obter o mínimo de recursos financeiros às suas famílias.

Há a necessidade, antes de qualquer medida econômica, que sejam reconhecidos e respeitados os direitos fundamentais dos povos indígenas às suas terras, pois sem elas não há possibilidade de vida e se aprofundam ainda mais as injustiças.

Porto Alegre, 04 de janeiro de 2021