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Há 106 anos, pacificação Xokleng serviu como armadilha para violência e esbulho territorial

Alemães ao lado dos Xokleng. Foto: acervo Edmar Hoernan

Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

Antonio Caxias Popó Xokleng vivia às margens do que resta do rio Platê, degradado pelos efeitos da Barragem Norte, em uma casa simples, com varanda, sobre um barranco. A estrada de terra e cascalho passa ao lado, aberta em tempos recentes, levando a outras aldeias da Terra Indígena Laklaño-Xokleng. Popó, como é mais chamado, morreu no dia 15 de maio de 2019, aos 80 anos.

Meses antes, sentado ao lado da esposa, Vacla Pathé, numa tarde fria e ensolarada, virou-se um pouco e apontou: “Logo ali mais pra trás, no rio, teve a pacificação. Quando nossos líderes antepassados apertaram a mão do branco. No contato eles prometeram nos livrar dos bugreiros. No começo era assim; depois, não”, diz. Usava os dedos para contar quanto tempo havia se passado desde o dia em que seu povo decidiu apertar a mão do branco, confiar naqueles homens cheios de presentes e depois ser traído.

No próximo dia 22 de setembro, a chamada pacificação Xokleng completa 105 anos. Nesse dia, em 1914, os líderes Kovi Pathé e Vomblé Kuzu partiram de um acampamento do povo (que não se fixava em aldeias), no final da madrugada, para o encontro definitivo com os enviados pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), fundado quatro anos antes pelo Marechal Cândido Rondon.

O bugreiro se tornava famoso justamente pela alta quantidade de corpos Xokleng que empilhava

Bugreiros posam para foto com suas vítimas Xokleng. Foto: acervo Sílvio Coelho dos Santos

Bugreiros posam para foto com suas vítimas Xokleng. Foto: acervo Sílvio Coelho dos Santos

Os anos anteriores foram marcados pela guerra entre os Xokleng e os bugreiros, assassinos mercenários contratados para entrar na mata e caçar os indígenas como se fossem animais. Os indígenas resistiam como podiam, mas em determinado momento o conflito passou a ser mortalmente desigual em face dos armamentos e da violência genocida dos bugreiros e seus contratantes.

O bugreiro se tornava famoso justamente pela alta quantidade de corpos Xokleng que empilhava e, orgulhoso do ofício macabro, que empenhava nas florestas ao redor do rio Platê, fazia o nome e se tornava uma lenda envolta de morte e crueldade neste comércio sanguinário.

Antes da decisão pelo contato, um eufemismo em face dos anos de massacres contra os Xokleng, os líderes Kovi e Vomblé decidiram reunir o povo para decidir se era chegada a hora de aceitar a pacificação ou continuar a luta na mata. Ambos estavam convictos de que a saída era apertar a mão do branco e iniciar uma nova vida. “Os Kaingang acompanhavam o Eduardo”, conta Popó.

Índio Xokleng com arco e flechas, nos primeiros momentos do contato. Foto provável de E. Hoerhan. Acervo Sílvio Coelho dos Santos

Índio Xokleng com arco e flechas, nos primeiros momentos do contato. Foto provável de E. Hoerhan. Foto: Acervo Sílvio Coelho dos Santos

O tal ‘Eduardo’ era Eduardo de Lima e Silva Hoerhann, na época um jovem de 18 anos e o servidor do SPI designado para a pacificação, mas que logo após se tornou o principal carrasco dos Xokleng matando indígenas, surrando-os sempre que contrariado, obrigando-os a trabalhos em situação análoga à escravidão e vendendo as terras do povo, que constam da primeira demarcação, na década de 1930. “Se fosse hoje ele tava morto, mas na época a gente sentia raiva, mas não tinha vingança”.

“Fizeram a pacificação vindo para cá de barco, pelo rio. Num salto que tem ali atrás, Eduardo matou pássaros. Nossa família ouviu os tiros na mata. Ficamos assustados, mas o Eduardo quando viu a gente ofereceu como presente. Sempre tinha presente pra gente na canoa”

Vacla Pathé Xokleng. Foto: Renato Santana/Cimi

Vacla Pathé Xokleng. Foto: Renato Santana/Cimi

Vacla Pahté lembra: “Fizeram a pacificação vindo para cá de barco, pelo rio. Num salto que tem ali atrás, Eduardo matou pássaros. Nossa família ouviu os tiros na mata. Ficamos assustados, mas o Eduardo quando viu a gente ofereceu como presente. Sempre tinha presente pra gente na canoa”. Vacla era filha de Kovi, que acabou sendo o primeiro Xokleng a apertar as mãos de Eduardo na pacificação.

Popó lembra do relato de sua avó sobre a noite anterior ao encontro que selou o destino do povo: “Todos se reuniram e decidiram que estava na hora da pacificação. Naquele tempo a gente não fixava aldeia, então devia ser em uma das paradas. Fizeram uma grande reza no final. Na reza eles viram, como se fosse um filme, que poderia ser ruim para o Vomblé. Por conta disso, Kovi disse que iria fazer o contato e o Vomblé ficaria recuado. O Kovi disse: se você ouvir eles atirando, atire de volta”.

O resto do povo ficou no meio da mata. Caso Kovi e Vomblé fossem mortos, o combinado era seguir resistindo à pacificação. Se eles voltassem, tudo aconteceria conforme a proposta de Kovi: colocariam fim à guerra. Os dois voltaram e os Xokleng aceitaram a pacificação após anos de guerra com os bugreiros e inúmeros encontros de negociação. O SPI fundou então o Posto Indígena Duque de Caxias, em homenagem ao bisavô de Hoerhann.

Kovi Pathé, liderança da época do contato, em registro de 1963. Foto: Sílvio Coelho dos Santos

Kovi Pathé, liderança da época do contato, em registro de 1963.
Foto: Sílvio Coelho dos Santos

No artigo Xokleng e a memória perdida: a história que é melhor não contar, do professor e pesquisador da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), o historiador Clóvis Brighentti argumenta que “a paz proposta pelo SPI aos Xokleng em 1914 nunca se materializou, ao contrário, a violência continuou, agora de maneira institucional. O século 20 pode ser caracterizado como um dos mais violentos contra os povos indígenas no Brasil justamente porque a prática era institucionalizada, era oficializada e legalmente amparada pelo regime tutelar a que eram submetidos os indígenas. A tutela era a extensão da guerra, era a impossibilidade de reação, o sentido mais desumano que se pode aplicar a um povo, tolher a liberdade e impedir que reajam”.

Brighentti explica que o SPI considerava as terras Xokleng como de sua propriedade. As poucas terras reservadas como acordo de pacificação, escreve o historiador da Unila, “foram sendo reduzidas, dos cerca de 40 mil hectares reservados no início do século restou aos Xokleng menos de 15 mil. Acordos, negociatas e abusos foram marcas no processo de roubo das terras. Em 1963, uma invasão é organizada por empresários regionais com centenas de famílias camponesas para roubar os últimos 15 mil hectares. Sozinhos e sem apoio, as lideranças indígenas se deslocaram a pé até capital do estado para denunciar e cobrar uma solução”.

Os bugreiros, chamados oficialmente pelo eufemismo de “batedores de mato”, eram contratados por companhias de colonização para exterminar os Xokleng. Acervo Sílvio Coelho dos Santos

Os bugreiros, chamados oficialmente pelo eufemismo de “batedores de mato”, eram contratados por companhias de colonização para exterminar os Xokleng. Acervo Sílvio Coelho dos Santos

A revisão dos limites, com a possível retirada dos invasores, começa a ter um fim apenas em 1998. No entanto, a demarcação acabou judicializada e o processo encontra-se em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) em Ação Civil Ordinária (ACO) 1100 impetrada pelo estado de Santa Catarina, empresas madeireiras e outros ocupantes.

Mais recentemente, o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, onde se discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, foi reconhecido como de Repercussão Geral, por decisão do ministro-relator, Edson Fachin, por ter argumento contra a ocupação indígena tratado também por outras ações que correm na Corte Suprema: a tese restritiva do Marco Temporal.

No entanto, para a população que vive nos municípios que incidem sobre a Terra Indígena Laklaño-Xokleng, e levam adiante as histórias deixadas pelos colonos antigos, tais discussões passam ao largo.

O chefe do Posto Indígena Duque de Caxias, Eduardo de Lima e Silva Hoerhann, ao lado dos Xokleng, então chamados pelos não-indígenas de “botocudos”. Foto: J Rulhand/acervo do Arquivo Histórico José Ferreira da Silva (AHJFS)

O chefe do Posto Indígena Duque de Caxias, Eduardo de Lima e Silva Hoerhann, ao lado dos Xokleng, então chamados pelos não-indígenas de “botocudos”. Foto: J Rulhand/acervo do Arquivo Histórico José Ferreira da Silva (AHJFS)

“A sociedade regional reconhece Eduardo de Lima e Silva Hoerhan como o herói pacificador, aquele que teve a audácia de estabelecer o contato e conviver com esse povo por praticamente meio século. Foi ele quem garantiu a tranquilidade para a sociedade regional, que impediu aos indígenas circularem por seu território tradicional, também foi o responsável por introduzir os valores e costumes das sociedades ocidentais no seio esse povo”, explica Brighentti em seu artigo.

Um dos relatos ouvidos pela reportagem, durante a visita à Terra Indígena, foi coletado e sistematizado pelo professor da Unila.

Aqui seguimos a edição dada por Brighentti a partir da fala de um Xokleng: “Meu avô trabalhava para o Eduardo, e contava o que o ele fazia com os índios. Um dia Eduardo chamou meu avô, e como ele se demorou um pouco, e quando ele estava chegando, o Eduardo mandou ele parar e mandou ele ficar ali, e o utilizou como um alvo; começou a dar vários  tiros, e um tiro acertou a orelha do meu avô, que ficou sem um pedaço da orelha, então meu avô contava que o Eduardo disse pra ele: eu só fiz isso pra treinar a minha arma nova. Então hoje nós não contamos pros nossos alunos que o Eduardo foi um herói porque ele judiou muitos dos índios, massacrou muito os índios, porque a história que nós ouvia do meu avô, meu  tio sempre contou também e outro mais velho também contava, que foi muito sofrido”.

“Os bugreiros tavam matando o povo e a pacificação era o único jeito de parar aquilo. Então a aldeia aceitou. Prometeram o fim das mortes. Mentiram pra gente e nos judiaram bastante” – Caxias Popó

Caxias Popó. Foto: Renato Santana/Cimi

Depois da ‘pacificação’, a Barragem Norte

Os anos após a pacificação foram de violência, redução drástica do território tradicional, pela comercialização de lotes patrocinada pelo SPI, atendendo às companhias de colonização patrocinadas pelo governo federal. Mesmo assim, os Xokleng mantinham uma aldeia, tecido social, territorialização e organização política própria. Hoerhann introduziu à força os costumes brancos e ocidentais.

“Obrigava a gente a usar roupa, rezar e a trabalhar nos horários dos brancos”, conta Caxias Popó. “Não vamos ser mais bobos. Temos de ser mais como os brancos. Estudar, ir para a escola. Assim eles não nos matam mais. Ficar contra eles acabam com a gente. Era assim que se pensava”, diz. A estratégia contra o genocídio logrou êxito, apesar de toda dor e sofrimento com as violações perpetradas pelo SPI. O tempo foi passando, as décadas correndo.

No final da década de 1970, uma nova ação estatal no território tradicional Xokleng impacta o povo: a Barragem Norte. “A vida antes da barragem era tranquila. Nada desmoronava, o rio era normal. Hoje não tem mais peixe porque não tem mais água. Tinham os poços, hoje é só lodo e areia. As margens do rio eram baixadas. Usávamos pra agricultura. Agora é um trecho de terra perdido, que não se usa. Antigamente era farto. Até para tomar um banho era bom”, conta Popó.

Para o indígena, o rio não irá sobreviver. “Fazíamos até aposta pra ver quem cruzada o rio a nado. Hoje dá pra caminhar de um lado para o outro. Quando tem tempestade, aí é o inverso: tudo fica inundado”, conta.

A tempestade de 2014 está na memória do povo. Além da Barragem quase transbordar, o que seria uma espécie de tsunami sobre o território, ao menos seis das oito aldeias ficaram isoladas, tendo que receber alimentos com a ajuda de helicópteros do Corpo de Bombeiros.

“Quando deu a tempestade, a casa estava por ali também (apontando para mais perto do rio). Era umas dez horas da noite… a casa estava para cair, rachando em cima, né. De tanto insistir, entramos no carro (apontando para Vacla) e viemos (para a casa onde estava no momento da entrevista). No outro dia, quando eu fui ver, não tinha caído (a casa), mas estufou a terra, o chão todo subiu. A casa não caiu, mas por debaixo dela tudo começou a desmoronar e ela começou a ficar torta… então antes de cair a gente aproveitou porta, janela, telha… tiramos pra reaproveitar. Depois nós mesmos terminamos de derrubar pra não machucar ninguém”, relata Popó.

“Hoje não tem lavoura, não tem nada. Isso é um problema. Pra usar capoeirão precisa de recurso, dinheiro. Como vamos arrumar dinheiro sem ter nossa agricultura? Eu vivia da terra. Hoje vivo de aposentadoria. Quem não é aposentado precisa trabalhar pros colonos. O pessoal novo perdeu o costume de trabalhar na terra. Uns estudam, outros trabalham fora. Precisamos desse nosso chão. Depois de tanto o que o governo fez, é o mínimo garantir isso pra gente”, conclui Popó.

 

Reportagem originalmente publicada no jornal Porantim 416 [1]
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