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Professor Kaiowá participa de Aula Viva sobre agroecologia na Tríplice Fronteira

Aula Viva ocorreu em aldeias Tikuna localizadas no Brasil e na Colômbia. Foto: Lídia Farias

Aula Viva ocorreu em aldeias Tikuna localizadas no Brasil e na Colômbia. Foto: Lídia Farias

Por Lídia Farias de Oliveira, do Cimi regional MS, e Lídio Cavanhas Ramires, professor Guarani Kaiowá

Entre os dias 10 e 16 de fevereiro de 2019, a Fundación Caminos de Identidad (Fucai) realizou uma “Aula Viva” na tríplice fronteira entre Peru, Colômbia e Brasil. A atividade aconteceu em duas aldeias Tikuna, sendo uma no Brasil e a outra na Colômbia. Estavam presentes representantes dos povos indígenas Kulina-Pano, Kanamari, Matis, Mayuruna, Marubo, Kokama, Baré e Apurinã, do Amazonas, Nambikara, de Mato Grosso, Parintintim, de Rondônia, e Taurepang e Makuxi, de Roraima.  Representando os Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul, o professor Lídio Cavanha Ramires, Kaiowá da aldeia da Te’y Kuê, também foi à região amazônica para participar do intercâmbio. O encontro contou também de forma ímpar com a participação de várias organizações indigenistas e camponesas de Brasil, Peru e Colômbia.

Esta atividade intitulada de Aula Viva – da Escassez à Abundância tinha por objetivo desconstruir e construir novos conceitos de roças e processos produtivos sustentáveis para os povos indígenas e outras populações tradicionais como quilombolas e ribeirinhos. A metodologia da atividade estava toda voltada para desmitificar conceitos relacionados ao tema, começando com perguntas que parecem simples, mas que nos desafiaram a reflexão: o que é a escassez? Como ela acontece? Em que existe escassez? Por que escolhemos viver na escassez? Por que se sente a escassez no meio da abundância?

Segundo o dicionário Aurélio, escassez é: “Falta; carência de recursos, de meios; ausência de algo que seja de extrema importância”. Durante a aula viva chegamos também a estes conceitos, mas identificamos que a escassez é fruto de monocultura, do individualismo de ser e de agir com a ideologia do capitalismo, a qual está presente em nosso cotidiano de forma constante, ou seja, em todos os aspectos da vida humana, mais perto do que se possa imaginar.

A escassez vive dentro de nós, ela fecha os nossos olhos e passamos a não ver mais os outros, isto é a escassez de amor; disputamos e nos dividimos internamente, e isto é a escassez da unidade. Permitimos que cresça sobre a terra apenas uma espécie como a soja, a cana e ou gado, produzindo a escassez da biodiversidade, e percebemos que os governantes estão do lado das elites, colocando os povos à margem, cultivando e fortalecendo o espírito da escassez de compromisso com a vida e a dignidade.

Percebemos também que somos tentados a fixar os nossos olhos nas coisas que nos faltam e, assim, vamos perdendo a capacidade de ver o que ainda temos. A proposta do encontro nos levou a perceber onde estão as nossas referências, se ainda é possível enxergar a abundância. O resultado, a partir dos intercâmbios de experiências dos participantes do encontro, foi esplendoroso.

A abundância vem da diversidade de saberes e práticas dos povos, da produção e manejo sustentável da Mãe Terra, da utilização de sistemas agroecológicos e agroflorestais, vivendo em harmonia com a natureza

Conceitos de escassez e abundância foram discutidos durante Aula Viva em territórios indígenas amazônicos. Foto: Lídia Farias

Conceitos de escassez e abundância foram discutidos durante Aula Viva em territórios indígenas amazônicos. Foto: Lídia Farias

Identificou-se abundância das águas, de línguas, de culturas, de espiritualidade, de conhecimentos tradicionais, de identidade, de esperança, de pesca e caças, de sementes, de frutas, ervas e medicinas tradicionais. Ou seja, a abundância vem da diversidade de saberes e práticas dos povos, da produção e manejo sustentável da Mãe Terra, da utilização de sistemas agroecológicos e agroflorestais, vivendo em harmonia com a natureza.

Um dos elementos identificados e que foi considerado vital, sobretudo para os povos indígenas, foi a questão do território, em cima do muro com relação à escassez e à abundância: para os povos indígenas da região amazônica, há abundância de demarcação das terras indígenas, porém falta o cumprimento do papel do Estado em proteger estes territórios e garantir a vida plena dentro destas comunidades. Já para os Kaiowá e Guarani que vivem na região centro-oeste brasileira, há uma escassez interminável de vontade em solucionar os conflitos territoriais a que estes povos estão submetidos. Há mais de 70 áreas em luta pela demarcação e, não bastasse a morosidade do Estado em avançar com estes processos, o novo governo brasileiro colocou o direito dos povos indígenas aos seus territórios tradicionais sob os cuidados do agronegócio.

Mesmo diante da negação de direitos vivenciada pelos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, o professor Lídio Cavanha Ramires, Guarani Kaiowá da aldeia da Te’y Kuê, conseguiu levar à aula viva uma diversidade grande de sementes nativas, que incluiu variedades de milhos e feijões. Esta partilha foi muito bonita e demostrou que só haverá abundância para os povos indígenas se houver a demarcação e proteção de seus territórios tradicionais.

O professor tem se esforçado para garantir a preservação das sementes tradicionais. Junto a alguns colegas da área, ele vem implementando um projeto piloto na comunidade, para constituir um grupo de famílias agricultoras que cultivem as sementes tradicionais do seu povo, em pequenas roças, no sistema de produção agroflorestal. Esta inciativa tem por objetivo mostrar para as novas gerações e demais comunidades indígenas e a sociedade envolvente que é possível cultivar alimentos saudáveis sem o uso de produtos químicos e a dependência de máquinas agrícolas, possibilitando tecnologias sustentáveis.

O professor Kaiowá da aldeia Te'y Kuê, Lídio Cavanhas Ramires, vem há anos fomentando práticas agroecológicas na sua comunidade. Foto: Lídia Farias

O professor Kaiowá da aldeia Te’y Kuê, Lídio Cavanhas Ramires, vem há anos fomentando práticas agroecológicas na sua comunidade. Foto: Lídia Farias

O indígena afirma que é muito difícil que a prática das roças ou quintais ecológicos perdurem até as próximas gerações se não tiver a garantia do território e outros meios de (re)produção de saberes e práticas. Diante desta situação, o professor Lidio Cavanha Ramires ressaltou durante a Aula Viva, a importância do papel da escola indígena para a difusão das praticas tradicionais de roça.

“A aldeia Te’y Kuê vem desenvolvendo este tema desde 1997, com a implantação da educação escolar indígena e do currículo diferenciado. Em 2001, uma unidade experimental foi construída para desenvolver atividades nessas temáticas. Contamos com o apoio da Secretaria Municipal de Educação e Esportes e outras parcerias como a Universidade Católica Dom Bosco – UCDB”, destacou o professor.

Um dos aprendizados mais relevantes da experiência foram as roças feitas sem queima, utilizando-se da tecnologia de sistemas agroflorestais, preservando o máximo de organismos vivos para enriquecer o solo e garantir a diversidade de espécies nas áreas cultivadas.

Segundo estudos da entidade que desenvolveu esta técnica para agricultura familiar, no primeiro ano da prática acumulam-se 30 toneladas de matéria orgânica e em cinco anos essa matéria pode chegar até a 80 toneladas, bem como o acúmulo de água no verão por hectares chega a 20 m³. Refletiu-se, a partir disto, que quanto mais diversa forem as roças, mais saudáveis serão os frutos delas, o que resulta em segurança alimentar e saúde física e ambiental.

A agricultura precisa ser planejada considerando a preservação do meio ambiente de forma sustentável. A monocultura empobrece o solo, afugenta os bichos e outros organismos vivos, polui o ar e as águas, portanto é insustentável.

No Mato Grosso do Sul as monoculturas de soja e cana-de-açúcar são extensas. Isso não só está acabando com um dos principais biomas brasileiros, o cerrado, e poluindo sobremaneira os rios da região e o aquífero Guarani, como também vem colocando abaixo toda a flora e a fauna presentes na mata atlântica.

Tal situação ainda não adentrou de forma massiva a Amazônia. Porém, pelo andar da carruagem, logo essa será a realidade por lá também, na medida em que o “progresso” chega, chegam também a destruição e os modelos insustentáveis de produção e exploração da Mãe terra.

A forma como os povos indígenas amazônicos lidam com a floresta também nos saltou aos olhos. Existe abundância de Harmonia com a natureza: retiram dela apenas o necessário para a sobrevivência, nem mais nem menos. Esta relação deveria servir de inspiração para os interesses desenvolvimentistas, que precisam entender que, se a mãe terra morrer, morreremos todos, sem distinção de raça, classe social ou cor.

E viva a Abundância, viva os Povos Indígenas, viva o Bem Viver, viva a Mãe Terra.

Dourados 24 de fevereiro de 2019