- Cimi - https://cimi.org.br -

Povos Kanamari e Kulina debatem resultados de projeto e fortalecem a luta por direitos

Indígenas da aldeia Matatibem analisam produtos do projeto Garantindo a Defesa de Direitos. Foto por Raimundo Francisco

Indígenas da aldeia Matatibem analisam produtos do projeto Garantindo a Defesa de Direitos. Foto por Raimundo Francisco

Por Lígia Apel, com informações de Raimundo Francisco e Francisco Amaral

Nos dias 6 a 12 de março, as aldeias Taquara, Matatibem e Bauana, no município de Carauari (AM), dos povos Kanamari e Kulina, receberam a equipe de educadores da Cáritas e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) de Tefé (AM) para a realização de reuniões de articulação no âmbito do projeto “Garantindo a defesa dos direitos dos povos indígenas do Médio Solimões e afluentes”. Projeto este realizado desde 2016 pelas duas instituições e apoiado pela União Europeia e Agência Católica de Desenvolvimento Internacional (CAFOD), que chega ao seu último semestre de ações na região.

O objetivo da atividade foi planejar a 3ª etapa da Oficina Politico-Jurídica para indígenas, a ser realizada nos dias 20 a 22 de março, bem como de outras atividades do projeto que se realizarão até junho de 2019. Na Oficina serão tratados assuntos da política nacional indigenista e das políticas públicas específicas conquistadas na Constituição Federal de 1988, cujas responsabilidades são atribuídas aos órgãos públicos de âmbitos nacional, estadual e municipal, à luz dos aprendizados adquiridos nas atividades de formação e incidências políticas realizadas no decorrer do projeto.

Durante as reuniões foram apreciadas coletivamente algumas das produções que sintetizam os resultados alcançados, como o Boletim Informativo Huhuride que traz as principais conquistas das ações, o Estudo de Caso [1] sobre as violações de direitos dos povos Kanamari e Kulina, o Mapa das Violações dos Direitos dos povos da região produzido nas Oficinas de Georeferencimanto e o vídeo sobre a Associação do Povo Deni do rio Xeruã (ASPODEX). O conteúdo desses produtos serão os insumos da Oficina, pois ao avaliarem as produções os indígenas constataram a força da ação coletiva e manifestaram sua satisfação pelos conhecimentos adquiridos. “Nós sabíamos dos nossos problemas, mas não tínhamos ninguém para ajudar a cobrar, nem sabíamos de quem cobrar nossos direitos. Com todas essas atividades apoiadas pelo Cimi nós estamos aprendendo. Nas oficinas de política e de leis nós estudamos sobre o que é nosso por sermos brasileiros”, disse Aro José Sarney Kanamari, liderança da aldeia Taquara.

Estudo de Caso é aprovado pelos indígenas da aldeia Matatibem. Foto por Raimundo Francisco

Estudo de caso é aprovado pelos indígenas da aldeia Matatibem. Foto por Raimundo Francisco

Um estudo que mostra a realidade e reforça a luta

Uma dos produtos que serão trabalhados com ênfase na 3ª Etapa da Oficina Politico-jurídica será o Estudo de Caso. O documento traz o diagnóstico da realidade de violações que sofrem e como elas acontecem, revelando que a não demarcação dos territórios desencadeia, como consequência, a negação de outros direitos civis e sociais garantidos nas leis brasileiras.

O estudo mereceu atenção especial durante as reuniões, também, porque foi construído coletivamente em encontro específico, em 2018, com a participação de 37 indígenas representantes das três aldeias e dos dois povos, Kanamari e Kulina, de Carauari, e agora é apresentado como devolutiva aos indígenas.

Estes dois povos afirmam sua identidade étnica e mantém seus costumes com festas tradicionais de saudação à colheita dos roçados, coleta de frutas, pesca e caça, artesanato próprio, pinturas corporais e rituais religiosos. Vida e cultura próprias protegidas pela Constituição Federal, que garante, em seu artigo 231, o reconhecimento dos “direitos originários sobre as terras que [os índios] tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. De acordo com o Artigo, tais direitos “são anteriores à formação do próprio Estado”, ou seja, existem sem a necessidade de reconhecimento oficial.

A prerrogativa do domínio jurídico sobre as terras indígenas ser da União, não gera impedimento de atuação dos estados e municípios para a prestação de serviços que atendam os direitos sociais e civis, tais como saúde, educação, meio ambiente e segurança pública, às comunidades indígenas.

Para além das garantias indígenas constitucionais, que têm nas especificidades culturais sua própria determinação legal para atendimento diferenciado, tais direitos devem ser garantidos à toda população radicada em território brasileiro.

No entanto, as lideranças participantes do estudo relataram durante a pesquisa que enfrentam situações de preconceito e discriminação em atendimentos públicos; ausência, precariedade e/ou negação de atendimento à saúde indígena; negligência na efetivação da Educação Escolar Indígena; invasões nas terras que ocupam para saque dos recursos naturais e ameaças à sua integridade física. Tais violações ferem os direitos históricos constitucionais reconhecidos aos indígenas e transgridem as leis brasileiras em seus diferentes âmbitos.

Assim, legitimado pelas populações que vivem nestes territórios, o Estudo de Caso revela uma realidade de violações de proporções extremas.

Ao analisarem o documento final, os indígenas aprovaram a sistematização das informações reunidas no estudo, manifestaram satisfação pelo resultado do trabalho coletivo e fortaleceram a confiança na sua luta e resistência. Para Aro Kanamari, “esse documento que nós fizemos juntos é um jeito de nós não parar de cobrar e exigir nossos direitos, porque mostra nossa realidade e as leis que conquistamos”.

O tuxaua (cacique) da aldeia Taquara, Raynom Kanamari, reforça o argumento mostrando preocupação com os novos rumos da política indigenista nacional assumida pelo novo governo que, abertamente, se posiciona contra a continuidade dos processos demarcatórios dos territórios indígenas e ataca sistematicamente seus direitos constitucionais. “Esse governo não quer saber dos nossos direitos, mas vamos mostrar a ele o que queremos e precisamos. Vamos buscar nossos direitos. Não é possível que mesmo vendo tudo isso que acontece com nosso povo, ele não vai nos atender”, diz o tuxaua exaltando a realidade descrita no estudo e desafiando as novas políticas indigenistas.

Reunião de articulação na aldeia Taquara do projeto Garantindo a defesa dos direitos. Foto por Raimundo Francisco

Reunião de articulação na aldeia Taquara do projeto Garantindo a defesa dos direitos. Foto por Raimundo Francisco

A presença da Funai

As reuniões realizadas em duas das três aldeias, Matatibem e Bauana, contaram com a presença da Coordenadora Técnica Local da Funai, em Carauari, Ercília da Silva Viera, que se posicionou com transparência dizendo que “a Funai não contribui com deslocamentos até as aldeias” e, por isso, agradece a “colaboração de parceiros como o Cimi que oferece ‘carona’ para as visitações de reconhecimento da realidade”.

As lideranças indígenas também agradeceram as parcerias e a franqueza da coordenadora, e lamentaram o descaso da Funai enquanto órgão indigenista oficial do Estado brasileiro, ao qual compete coordenar e executar as políticas indigenistas [2] do Governo Federal, protegendo e promovendo os direitos [3] dos povos indígenas [4].

Enaltecendo a prestatividade da coordenadora apresentaram suas necessidades e carências da ação da Funai.

O apoio continua

Na perspectiva de visibilidade do conjunto de violação de direitos que todos os povos indígenas vivem e da promoção de incidências políticas capazes de buscar a reparação das violações, o projeto “Garantindo a defesa dos direitos dos povos indígenas do Médio Solimões e afluentes”, realizado por Cáritas e Cimi Tefé, apoiado pela União Europeia e CAFOD, chega ao último semestre com seu principal objetivo alcançado: fortalecer as capacidades e conhecimentos indígenas para que se constituam como protagonistas de suas histórias.

O projeto chega a seus últimos meses de ação, mas o apoio da Cáritas e Cimi Tefé, buscando o fortalecimento de protagonismo indígena, vai continuar. Os povos originários merecem respeito e a continuidade de suas formas de vida em seus territórios demarcados e protegidos.