
Indígena em frente ao Congresso Nacional durante o ATL 2018. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi
[Atualizado em 30/05/2018]
Os Projetos de Lei (PLs) 490/2007 e 6.818/2013, que tramitam em conjunto com outras dez medidas, estão em estágio avançado na Câmara dos Deputados. O parecer do relator, o ruralista Jerônimo Goergen (PP/RS), foi apresentado à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) em maio e está pronto para ser votado. O relatório chegou a ser incluído na pauta do dia 30 de maio, mas a reunião da CCJC foi cancelada.
O ruralista defende a aprovação de um substitutivo ao PL 6.818, que é um dos onze projetos apensados – ou seja, que tramitam juntos por tratarem de matéria semelhante – ao PL 490. Sua proposta descarta o inconstitucional PL 490, mas é ainda pior: altera o Estatuto do Índio e cria uma nova lei para “regular a demarcação de terras indígenas”.
Na prática, o substitutivo proposto por Goergen estabelece um conjunto de dispositivos que inviabilizam as demarcações, facilitam obras e a exploração de recursos em terras indígenas e retiram o direito de consulta prévia dos povos originários, consagrado internacionalmente.
Ele também insere no Estatuto do Índio – que data de 1973 – a tese do marco temporal, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
A partir do relatório de Goergen, o conteúdo do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU) – chamado por indígenas de “Parecer do Genocídio” e apontado como inconstitucional [1] pelo Ministério Público Federal (MPF) – também é incorporado ao projeto e pode ser fixado em lei.
“Trata-se de mais uma iniciativa anti-indígena por meio da qual a bancada ruralista tenta aprovar o conteúdo também presente na PEC 215 e no Parecer 001 da AGU de Temer”
Em parecer sobre o projeto [2], a Assessoria Jurídica do Cimi avalia que o substitutivo de Goergen “é inconstitucional, pois afronta os artigos 231 e 232 da Constituição Federal”. A análise também aponta que o PL “se utiliza de precedentes já superados” pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e usa apenas partes de decisões que, fora de contexto, prejudicam os povos indígenas.
Os parlamentares Chico Alencar (RJ) e Ivan Valente (SP), ambos do PSOL, apresentaram um voto em separado [3] no qual apontam que os PLs 490 e 6.818, assim como os outros apensados a eles, são inconstitucionais, restringem as demarcações e atendem aos “interesses de grupos econômicos específicos”, com a finalidade de “eliminar boa parte dos direitos conquistados pelos povos indígenas”.
“Trata-se de mais uma iniciativa anti-indígena por meio da qual a bancada ruralista tenta aprovar o conteúdo também presente na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 e no Parecer 001 da AGU de Temer”, avalia Cleber Buzatto, secretário executivo do Cimi.
Caso seja aprovado na CCJC, o substitutivo de Goergen ao PL 6.818 passa à plenária e pode ser aprovado por maioria simples – ou seja, basta obter votos favoráveis da maioria dos parlamentares presentes.

Jerônimo Goergen, no microfone, ao lado do ruralista e colega de bancada Luís Carlos Heinze (PP/RS), que já disse que “quilombolas, índios, gays, lésbicas” são “tudo que não presta”. Foto: divulgação
Emaranhado anti-indígena
Parado desde 2015, o PL 490 [4] voltou a ser movimentado neste ano, depois que a intervenção federal no Rio de Janeiro foi decretada por Temer. Enquanto a intervenção vigora, emendas à Constituição Federal não podem ser aprovadas e, por isso, a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, principal proposta anti-indígena dos ruralistas na Câmara, também fica bloqueada.
Até o fim da intervenção, os ataques legislativos só podem ser concretizados por meio de projetos de lei. Por isso, parlamentares ruralistas têm movimentado uma série de projetos para flexibilizar o licenciamento ambiental, ampliar o uso de venenos e permitir a venda de terras para estrangeiros e liberar obras em terras indígenas – inclusive por meio da adulteração de medidas provisórias [5].
A proposta original do PL 490, apresentada em 2007 pelo também ruralista Homero Pereira (PSD-MT), tinha uma pretensão semelhante à da primeira versão da PEC 215: fazer com que as demarcações de terras indígenas passassem a ser uma atribuição do Legislativo, feitas por meio de projetos de lei – algo que o Ministério Público Federal (MPF) já apontou ser inconstitucional [6].
Durante sua tramitação, foram apensados ao PL 490/2007 outros onze projetos de lei que também tratam da demarcação de terras indígenas. Destes onze, dez são de autoria de ruralistas e têm viés claramente anti-indígena. Tecnicamente, o parecer de Jerônimo Goergen propõe uma nova redação a um substitutivo do PL 6.818/2013, que é um dos onze projetos apensados ao PL 490 e, agora, passa a ser o principal do conjunto.
Parcialidade ruralista
A fixação da tese do marco temporal é um dos principais aspectos da proposta de Goergen, e só não se aplicaria em casos de “renitente esbulho devidamente comprovado”, ou seja, nos casos em que a disputa pela terra indígena, seja ela por conflito físico ou jurídico, tenha se estendido até o dia 5 de outubro de 1988.
A revisão de limites de terras indígenas demarcadas com tamanho menor do que deveriam – chamada pelos ruralistas de “ampliação de terras indígenas” – também passaria a ser proibida por lei.
Ambos os pontos restringem o direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras tradicionais e constam do “Parecer do Genocídio” da AGU. Conforme destaca a Assessoria Jurídica do Cimi, são proposições inconstitucionais e que subvertem julgamentos do STF – especialmente do caso Raposa Serra do Sol.
“Além de inconstitucional, a proposta é contraditória ao precedente mais importante citado pelo próprio relator, em prejuízo dos povos originários e dos seus direitos territoriais”
Naquele processo, o STF votou a favor dos indígenas e da demarcação contínua da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, descartando a proposta de uma demarcação em ilhas. A Corte também estabeleceu 19 condicionantes no julgamento, mas determinou que elas não deveriam ser aplicadas a outros casos.
Na avaliação da Assessoria Jurídica do Cimi, o substitutivo ao PL 6.818 “segue uma linha de reinterpretação do julgado no caso Raposa Serra do Sol”, ao extrair dele “excertos, teses marginais e periféricas” e ignorando o fato de que, no essencial, o julgamento favoreceu os indígenas.
Ironicamente, a proposta do deputado Jerônimo Goergen proíbe que uma terra seja demarcada para mais de um povo – uma proposição que desconsidera a realidade de diversas terras indígenas do Brasil e contraria exatamente o ponto principal da decisão do STF no caso Raposa Serra do Sol.
O parecer da Assessoria Jurídica do Cimi cita outros 29 precedentes recentes do STF que vão num sentido oposto ao defendido pelos ruralistas – entre eles, dois julgamentos do pleno do STF que, ao longo do último ano, reafirmaram o caráter originário [7] dos direitos indígenas e afastaram a tese do marco temporal no caso dos quilombolas [8].
Ataque ao direito de consulta e autonomia
O projeto também prevê a participação de entidades da sociedade civil, estados e municípios “desde o início do processo administrativo demarcatório”, estes últimos com poder de “participação efetiva, voz e voto”.
Por outro lado, o direito à Consulta Livre, Prévia e Informada previsto na Convenção 169 da OIT é desrespeitado, com a autorização para que intervenções militares, construção de estradas, empreendimentos de energia e “o resguardo de riquezas de cunho estratégico” ocorram sem qualquer consulta às comunidades ou à Funai.
O ingresso, o trânsito e a permanência de não indígenas em terras tradicionais também seriam autorizados, desde que “justificados”.
Em sua análise, a Assessoria Jurídica do Cimi destaca que, em nenhum momento, indígenas foram consultados a respeito das mudanças propostas pelos PLs, o que em si já representa um “vício insanável” no projeto.
O substitutivo de Goergen ainda estabelece que, nos casos de sobreposição de unidades de conservação a terras indígenas, a área sobreposta ficaria sob gestão dos órgãos ambientais.
Congresso anti-indígena
O PL 490 é uma das 33 proposições que ameaçam os direitos dos povos indígenas no Congresso Nacional, segundo levantamento feito em 2017 [9]. Assim como este PL tramita com outros onze projetos apensados, as 33 proposições reúnem um conjunto de mais de 100 projetos de lei que visam alterar direitos indígenas – a maioria com a intenção de retirá-los ou restringi-los.
O próprio Jerônimo Goergen, integrante das Frentes Parlamentares da Agropecuária (FPA) e da Mineração, é autor de outros dois projetos que pretendem anular demarcações de terras indígenas: o PDC 348/2016, que pretende sustar a demarcação da TI Piaçaguera, em São Paulo, e o PDC 388/2016, que visa fazer o mesmo com a TI Mato Castelhano, no Rio Grande do Sul.
Não por acaso, 17 das 33 proposições buscam alterar o processo de demarcação de Terras Indígenas – todos com viés anti-indígena. Dos 11 deputados da atual legislatura que são autores de projetos, dez, incluindo Goergen, integrantes ativos da bancada ruralista.