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Morre Carlito Jaminawa, um dos últimos pajés do povo Jaminawa

O jovem Samuel Shawadawa entrevista o pajé Carlito Jaminawa, numa iniciativa para registrar as histórias dos mais velhos. Foto: Paola Mallmann/Cimi AO

O jovem Samuel Shawadawa entrevista o pajé Carlito Jaminawa, numa iniciativa para registrar as histórias dos mais velhos. Foto: Paola Mallmann/Cimi AO

Por Paola Mallmann de Oliveira, Cimi Regional Amazônia Ocidental

“Quando morre um pajé, se vai uma biblioteca inteira”

Na madrugada do dia 4 de maio, faleceu Carlito Jaminawa, um dos últimos pajés vivos do povo Jaminawa. Carlito, que faleceu com 91 anos devido a uma pneumonia, até a morte seguiu firme fazendo suas rezas e curas da cultura Jaminawa. Os familiares próximos se deslocaram da aldeia para ir ao velório, e o pajé foi sepultado no cemitério da cidade.

Carlito Jaminawa era conhecedor dos processos iniciativos de formação de pajés, das dietas rigorosas, dos rituais, relação com animais e plantas, cantos e feitiços. Nasceu na cabeceira do rio Acre e migrou junto com o agrupamento Jaminawa para a região de Sena Madureira (AC) e, então, para as novas aldeias, indo morar com os parentes em um uma das terras reivindicadas pelos Jaminawa, que é a terra indígena Kayapuka, localizada no município de Boca do Acre (AM).

Os parentes de Carlito Jaminawa estavam bastante tristes com a perda. Nossa equipe encontrou com eles no porto do rio Yaco, de onde, navegando oito horas pelo rio Purus, se consegue chegar até a aldeia. Durante a viagem, Marina Jaminawa, filha do pajé e respeitada pelo grupo como uma mulher de conhecimento, chorou muitas vezes a morte do pai. A dor da perda se intensificou quando chegamos, com um choro ritual que é um dos aspectos do luto Jaminawa. A casa de seu Carlito, ao lado da sua, ficou fechada durante os dias em que estivemos os lá.

Nossa ida à aldeia teve como um dos objetivos a realização de uma oficina de pinturas corporais Jaminawa, que na língua levam o nome de kedê, como uma iniciativa de valorização da cultura deste povo.

A oficina aconteceu, mas agregou os silêncios do luto por parte dos adultos. Marina sentou-se com o urucum nas mãos, pintando-se e pintando as meninas. Zé Correia, liderança Jaminawa e chefe de posto da Funai em Sena Madureira, também comentou a proibição de fazerem de modo alegre os rituais, com dança, por exemplo, que é para o espirito do pajé não pensar que estão alegres com a sua partida.

Marina Jaminawa, filha do pajé Carlito, na aldeia Kayapuka. Foto: Paola Mallmann/Cimi AO

Marina Jaminawa, filha do pajé Carlito, na aldeia Kayapuka. Foto: Paola Mallmann/Cimi AO

Marina Jaminawa transmitiu de modo sensível a memória do que aprendeu com o seu pai, bem como os saberes femininos, das mulheres que faziam partos sozinhas, sobre as ervas que curam.

Outro conhecido pajé, Ricardo Jaminawa, casado com uma das filhas de Carlito, também está doente e internado na Casa do Índio em Rio Branco, para fazer uma cirurgia. Quando o visitamos, ele relatou os sonhos que teve sobre a recuperação de sua saúde e a volta para a aldeia Canaã, onde mora. Também sonhou com seus afazeres, a plantação e a prática de dançar o Mariri.

Junto com Ricardo, o pajé Carlito Jaminawa era um dos principais guardiões das narrativas do povo Jaminawa. Antes de seu falecimento, muitas de suas histórias ainda puderam ser registradas e serão reunidas em um livro – que, por sugestão de Zé Correia, deverá receber o seu nome na língua Jaminawa, Yuduwei, como forma de homenagem.

O episódio de perda do sábio também revela o contexto vivenciado pelos grupos Jaminawa moradores da região de Sena Madureira. Além de sua subsistência ser difícil em uma realidade precária, existe uma desfavorável relação com a cidade que os estigmatiza. Nas novas aldeias, ainda falta escola, rádio, tudo.

Depois de vinte anos perambulando pelas ruas da capital de Rio Branco e da cidade de Sena Madureira, a partir de 2017, alguns grupos Jaminawa retornaram às suas comunidades de origem e outros formaram novas aldeias, construindo suas moradias e seus roçados. Ao voltarem, o Programa Terra Legal, do governo federal, já havia loteado suas terras, razão pela qual há conflitos entre índio e não-índios na região.

Além disso, a presença dos índios na cidade segue não sendo bem-vista, e sua acessibilidade aos espaço urbano restrita, fora outros tensionamentos existentes na região. Apesar do contexto desfavorável e da dor pela perda do ancião, o legado de Carlito Jaminawa é mantido vivo por um povo desperto, que constrói novas estratégias de resistência política frente à falta de apoio local e busca cotidianamente de valorizar sua identidade cultural.