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Meu glorioso Clodiodi: Um ano do Massacre de Caarapó, demarcação foi anulada e fazendeiros soltos

Por Renato Santana e Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação – Cimi

Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza foi morto há um ano no tekoha – lugar onde se é – Toro Paso, município de Caarapó (MS). Dias antes, em 12 de junho, o Guarani e Kaiowá, ao lado de outros 300 indígenas do povo, retomou uma área de 490 hectares da Fazenda Yvu, incidente sobre o tekoha. Os fazendeiros se reuniram em consórcio e atacaram o acampamento da retomada, apoiados por jagunços, pistoleiros uniformizados e encapuzados. Utilizaram retroescavadeiras e incendiaram tudo o que identificavam como pertences dos indígenas. Além de Clodiodi, cinco Guarani e Kaiowá foram baleados e seis outros feridos – inclusive a tiros de bala de borracha. O ataque durou entre nove e 13 horas, sem a polícia intervir. Nenhum fazendeiro ou bandido contratado para atacar os indígenas se feriu, ou foi preso. O local do massacre – Toro Paso – passou a ser chamado de retomada Kunumi Poty Verá, nome indígena de Clodiodi.

Kunumi Poty Verá faz parte da demarcação Dourados Amambaipeguá I. Por conta da paralisação do procedimento, incluído ainda em um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado em 2007, portanto há dez anos, entre o Ministério Público Federal (MPF) e o governo federal (nenhum procedimento foi concluído, de apenas quatro abertos), os Guarani e Kaiowá decidiram que não era mais possível esperar às margens das rodovias: passaram a retomar áreas tradicionais pertencentes à delimitação da demarcação. “Essa demora do governo matou Clodiodi e mais uns tantos”, afirma Elson Guarani e Kaiowá. Mesmo diante da procrastinação estatal, a Justiça Federal, no dia 10 de fevereiro deste ano, suspendeu o processo administrativo da Dourados Amambaipeguá I, declarando o ato nulo. Para os Guarani e Kaiowá, este pode ser considerado o segundo assassinato de Clodiodi.

Sem reparação ou o direito à terra para viver, e não apenas ser enterrado, e com os criminosos impunes, o sentimento dos Guarani e Kaiowá um ano depois do Massacre de Caarapó acompanha as denúncias que o povo realiza nos últimos tempos nas Nações Unidas (ONU) e Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). “Na verdade a política indigenista do governo para a gente é o genocídio. Violam nossos direitos de todas as maneiras. No Mato Grosso do Sul um saco de soja, um boi valem mais que um indígena, um ser humano”, declara Elizeu Guarani e Kaiowá. Estatísticas e estudos comprovam a veracidade da fala do indígena. Conforme o Atlas Agropecuário [1], 92% do território sul-mato-grossense está em terras privadas; 83% desse total, são de latifúndios – a Fazenda Yvu, por exemplo. O restante do território do estado está destinado a áreas protegidas (4%), incluindo aqui as terras indígenas, e 1% de assentamentos. Da totalidade das terras do Brasil, 53% encontram-se em áreas privadas e 28% é a taxa de ocupação de latifúndios.

De acordo com dados que o Itamaraty disponibiliza para as relações comerciais exteriores, tendo no Mato Grosso do Sul um de seus principais produtores de commodities, cerca de 80% da população do estado vive em centros urbanos. “O assassinato de Clodiodi está inserido dentro deste contexto de voracidade do agronegócio por terras. O que nos preocupa é o fato de que o juiz que declarou nulos os atos do procedimento administrativo da Dourados Amambaipeguá I usou a tese do marco temporal. É farta a documentação comprovando que os Guarani e Kaiowá foram retirados à força de suas aldeias, mas sempre se mantiveram perto delas vivendo sob terríveis privações na beira de estradas ou confinados em reservas”, declara Flávio Vicente Machado, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional MS. Na tese do marco temporal, só poderiam ser consideradas terras tradicionais aquelas que estivessem sob posse dos indígenas na data de 5 de outubro de 1988 – a promulgação da Constituição Federal. Em 12 de maio de 2016, a Dourados Amambaipeguá I foi declarada e delimitada pela Fundação Nacional do Índio (Funai), vinculada ao Ministério da Justiça, com publicação no Diário Oficial da União. Outros tekoha fazem parte da grande terra, que ainda abrange a Reserva Indígena Tey’i Kue – criada na década de 1930 para confinar os Guarani e Kaiowá expulsos de seus territórios tradicionais contra a própria vontade.

Para Elson Guarani e Kaiowá, a única decisão possível é seguir colocando a vida em risco para que o direito se estabeleça de alguma maneira. Não apenas no Mato Grosso do Sul, mas em vários estados do país povos têm adotado a estratégia da autodemarcação. Enquanto isso, as retomadas não cessam – e as consequências violentas na mesma proporção. Há um ano já era o que se tinha no horizonte. “Vinham mais de duzentos carros. Fizeram uma divisão, dois grupos: um veio de um lado, pela divisa da aldeia, fizeram um cerco na gente. Do outro lado, veio pá cavadeira [tipo de trator] e arrebentou a cerca, e começaram a entrar pelo campo. Vieram atirando, atirando, tiroteio feio mesmo, arma pesada”, relatou à época um Guarani e Kaiowá. “Atiraram sem trégua, encapuzados de milícia paramilitar”, diz um verso da música Meu Glorioso Clodiodi, do Ruspo (ouça aqui [2]). O MPF, dias depois do assassinato de Clodiodi, denunciou 12 indivíduos por formação de milícia privada no MS, envolvendo casos anteriores a este que ficou conhecido como Massacre de Caarapó.

Parlamentares da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara Federal realizaram uma diligência no Mato Grosso do Sul, entre os dias 15 e 16 de junho do ano passado, logo após o massacre. Revelaram em relatório que policias do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) e as polícias Militar e Federal estiveram na retomada um dia antes do ataque aos Guarani e Kaiowá. De acordo com o relatório apresentado pelos parlamentares, o fazendeiro conhecido como Virgílio Mata Fogo afirmou aos Guarani e Kaiowá, na presença dos policiais, que caso a comunidade não saísse da área retomada ele iria “resolver do meu jeito (SIC)”. No dia seguinte, conforme o documento da CDHM, Virgílio coordenou o ataque que terminou no Massacre de Caarapó junto com outros dois fazendeiros chamados de Camacho e Japonês.

A relatora especial das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz [3], condenou o ataque contra os Guarani e Kaiowá e afirmou s etratar de “uma morte anunciada”. A especialista instou as autoridades federais e estaduais a adotar ações urgentes para prevenir mais assassinatos, bem como investigar e responsabilizar os perpetradores. “Paramilitares agindo por instruções de fazendeiros realizaram o ataque em retaliação contra a comunidade indígena que busca o reconhecimento de suas terras ancestrais”, disse nota oficial da relatoria [4]. O caso de Clodiodi constou no relatório de Victoria, apresentado em setembro, onde ela conclui, depois de ter percorrido Brasília, Mato Grosso do Sul, Bahia e Pará que o governo brasileiro não atendeu às recomendações da Relatoria Especial para os Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas, realizadas em 2008 em decorrência da visita do relator James Anaya.

Velório de Clodiodi. Foto: Ana Mendes/Cimi

Velório de Clodiodi. Foto: Ana Mendes/Cimi

Ordens de despejo, ameaças, prisões

Menos de 48 horas depois de deixar o Hospital da Vida, em Dourados (MS), Simão Guarani e Kaiowá, sobrevivente do Massacre de Caarapó, sofreu emboscada durante a noite do dia 26 de junho de 2016, na casa que divide com a esposa e uma filha na Reserva Tey’i Kue, inserida nos limites de demarcação da Dourados Amambaipeguá. Antevendo as intenções dos indivíduos não identificados que se aproximavam da moradia, Simão mandou que a mulher fugisse com a filha e ele danou-se pela plantação de mandioca da família em busca de um esconderijo. O pai de Clodiodi e outros indígenas presentes no Massacre de Caarapó passaram a ser ameaçados nos dias seguintes ao ataque. “A gente conhece todos que tavam ali e que deu pra gente ver. Tão ameaçando pra gente não contar”, declarou um Guarani e Kaiowá à época.

Ao programa Notícias Agrícolas, o presidente do Sindicato Rural de Caarapó, Carlos Eduardo M. Marquez, declarou que os “produtores da região” se reuniram para retirar os Guarani e Kaiowá da retomada Yvu, mas que “não houve conflito. Os indíos voltaram para a aldeia, ficaram revoltados e trancaram a estrada. Tinha uma carreta carregada. O motorista ficou com medo e atropelou o índio (Clodiodi)”. O superintendente do Hospital da Vida, para onde foram encaminhados os Guarani e Kaiowá baleados, declarou ter “certeza absoluta” de que os indígenas foram atingidos por arma de fogo. No caso de Clodiodi, a morte foi causada por dois disparos que o atingiram no tórax, sem nenhum sinal de atropelamento por um veículo de grande porte. Conforme imagens feitas pelos próprios indígenas, o corpo de Clodiodi foi recolhido por seus parentes no interior da fazenda Yvu e ainda com a presença dos fazendeiros na área.

Não apenas as ameaças ou as manipulações tentando descaracterizar o ataque aguardavam os Guarani e Kaiowá, além de possíveis prisões contra lideranças [5]. As famílias sobreviventes enfrentaram uma ordem de despejo contra o tekoha Kunumi Vera. O juiz Janio Roberto dos Santos, da 2ª Vara da Justiça Federal de Dourados, concedeu liminar de reintegração de posse em favor de Silvana Raquel Cerqueira Amado Buainain, proprietária da fazenda Yvu, onde está localizado o tekoha pelo qual Clodiodi tombou. A decisão foi revertida posteriormente, em instâncias superiores. Sequer o posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em repúdio ao ataque e pedindo a demarcação sensibilizou o juiz.

A força-tarefa Avá Guarani prendeu cinco fazendeiros por envolvimento no ataque. Em suas propriedades, apreendeu ao todo 11 armas, 310 cartuchos e dois carregadores de pistola foram recolhidos pela polícia. Foram encontrados dois revólveres e um rifle calibres 38, uma pistola .380 e sete espingardas calibres 16, 22, 28, 32, 36 e 38. Dos 310 cartuchos recolhidos, a maioria são de calibre 22 (91 unidades), 380 (67) e 38 (54). Foram apreendidos carregadores sem a respectiva arma e que armamentos registrados em nome dos fazendeiros presos não foram localizados. Para o MPF, o resultado da busca e apreensão reforça as investigações. “A perícia realizada no local do ataque à comunidade encontrou projéteis deflagrados em calibres similares às munições apreendidas”.

No dia 28 de outubro de 2016, o MPF apresentou a denúncia à Justiça Federal em Dourados contra os cinco envolvidos na retirada forçada dos indígenas da Fazenda Yvu. “Os fazendeiros, que estavam presos preventivamente até semana passada, responderão por formação de milícia armada, homicídio qualificado, tentativa de homicídio qualificado, lesão corporal, dano qualificado e constrangimento ilegal. As penas podem chegar a 56 anos e 6 meses de reclusão. Segundo as investigações, “os denunciados organizaram, promoveram e executaram o ataque à comunidade Tey Kuê no dia 14 de junho. Cerca de 40 caminhonetes, com o auxílio de três pás carregadeiras e mais de 100 pessoas, muitas delas, armadas, retiraram à força um grupo de aproximadamente 40 índios Guarani Kaiowá da propriedade ocupada – que incide sobre a Terra Indígena Dourados Amambaipeguá”. Por decisão monocrática do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, todos foram soltos em 3 de novembro.

Elson Guarani e Kaiowá conta que na terra tradicional onde Clodiodi tombou, e que a Justiça diz que não existe mais, a vida é próspera. “Plantamos nossa comida (foto acima), sem veneno. Conseguimos vender feijão e mais umas plantações para comerciantes. A terra é a vida pro nosso povo. Não queremos ela para o ruim, para a maldade, para ficar rico. Queremos a terra para viver bem, junto de Ñanderu, dos espíritos dos que morreram pela terra. É o lugar pra nossas crianças crescerem. Com ela temos vida, bastante. Sem ela é morte, dor e sofrimento. Pro branco já não basta tudo o que passamos?”, diz.