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Terra Tradicional do Povo Xavante de Marãiwatséde – TRF-1

Decisão da quinta turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) a respeito da situação de invasão da Terra Indígena Marãiwatséde

EMENTA

CIVIL E PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERVENÇÃO DE TERCEIROS. ASSISTÊNCIA. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE INTERESSE JURÍDICO. OBRIGAÇÃO DE FAZER E NÃO FAZER. TERRAS INDÍGENAS. MARCO TEMPORAL DA OCUPAÇÃO. DESAPOSSAMENTO POR NÃO-INDIOS. POSTERIOR DEMARCAÇÃO DA ÁREA E HOMOLOGAÇÃO PELO PODER EXECUTIVO. FORÇA AUTO-EXECUTÓRIA DO DECRETO PRESIDENCIAL. BEM DA UNIÃO. NULIDADE DE TÍTULOS SOBRE TERRAS INDÍGENAS. INEFICÁCIA DE REGISTRO TORRENS. POSSE DE MÁ-FÉ. AUSÊNCIA DE DIREITO DE RETENÇÃO. CUMPRIMENTO DO JULGADO.

1. Não se discute, nesta ação civil pública promovida contra posseiros e pretensos proprietários qualquer obrigação legal de que seja sujeito passivo o Estado de Mato Grosso. Vale dizer, não há nenhuma relação jurídica controvertida que atinja a esfera do referido ente federativo direta ou indiretamente.

2. Não têm os réus sem título de propriedade nenhum direito em face do Estado de Mato Grosso, independentemente da solução a ser dada à lide, posto se tratarem de meros invasores da área, inexistindo possibilidade de ajuizamento de ação indenizatória contra o referido ente federativo, por conta de precedente alienação. Referidos réus simplesmente invadiram a área por vontade própria porque se auto-intitularam detentores do direito de ali serem assentados em processo de reforma agrária. Não o fizeram por conta do Estado de Mato Grosso, portanto, nada poderão alegar em face deste.

3. A solução a ser dada ao pedido de intervenção do Estado de Mato Grosso não é diversa, mesmo considerando a existência de alguns pretensos proprietários no polo passivo da ação, os quais poderiam, em tese, ajuizar futuramente ação indenizatória contra o referido ente federativo em decorrência da citada alienação. Ora, doutrina e jurisprudência são uníssonas no sentido de que não basta o interesse econômico para justificar a intervenção de terceiros na lide; é preciso que haja interesse jurídico para tanto.

4. Nessa mesma linha de compreensão destaco trecho do Acórdão da lavra da eminente Desembargadora Federal Selene Almeida acerca da intervenção de terceiros como assistente na Petição n. 2005.01.00.048156-7/MT, onde restou consignado que “a assistência supõe interesse jurídico, não podendo ser admitido como assistente simples ou litisconsorcial quem revele unicamente interesse político e econômico” [TRF/1ª Região, Quinta Turma, DJ 05/10/2005, p. 57].

5. A legitimidade do Ministério Público Federal para propositura da ação civil pública decorre diretamente da Constituição Federal, sendo certo que dentre as suas funções institucionais compreende-se a prerrogativa de defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas (art. 129, incisos III e V, CF).

6. A ação civil pública permite a postulação de tutela de qualquer natureza, seja condenatória, declaratória, constitutiva, ou mandamental. No caso em exame, a controvérsia está centrada na alegação de indevida ocupação de terras indígenas, que são bens da União por força de norma constitucional, revelando a pretensão ministerial um mecanismo de defesa do patrimônio público com destinação especial, materializada na formulação de providências judiciais perfeitamente compatíveis com a natureza da ação. Não impressiona a existência de pedido de desintrusão da área, que é mera consequência do pedido principal, consistente na proibição de qualquer pessoa exercer ilicitamente a posse de área pública.

7. Não há litispendência quando ausente a tríplice identidade entre as ações, consoante previsão contida no artigo 301, § 2º, do Código de Processo Civil.

8. Desnecessária a produção de uma prova que de antemão se revela imprestável, conforme acentuado pela própria parte que se diz interessada na sua realização. Nessas circunstâncias, deve-se entender que a insistência manifestada no sentido de sua efetivação denuncia um propósito meramente protelatório, atitude que deve ser combatida vigorosamente pelo juiz da causa.

9. Além disso, na hipótese, a prova documental existente nos autos supre a necessidade dos depoimentos requeridos, fornecendo todos os elementos necessários para análise das alegações das partes, não sendo o caso de se pronunciar a nulidade processual sem a comprovação de prejuízo.

10. Se o juiz não vislumbra nenhuma nulidade capaz de tornar imprestável a prova produzida, não precisa proferir decisão interlocutória afirmando essa realidade, podendo passar ao exame das conclusões do laudo pericial na própria sentença. Entender de modo contrário seria ensejar o surgimento de incidentes processuais desnecessários, criando obstáculos para a entrega da tutela jurisdicional, numa atitude de afronta à magnitude do papel exercido pelo juiz no processo, especialmente aquele relacionado ao dever de velar pela rápida solução do litígio, nos termos do artigo 125, inciso II, do Código de Processo Civil.

11. A citação por edital encontra respaldo no artigo 231, inciso I, do Código de Processo Civil, sempre que o réu seja desconhecido ou incerto. No caso sob exame, não se pode olvidar que está se tratando da invasão de parte de uma área com mais de cento e sessenta mil hectares, por centenas de pessoas. Algumas puderam ser identificadas por ocasião da propositura da ação, outras não. Nesse contexto, a atividade jurisdicional não pode ficar a mercê da perfeita individualização de cada um dos ocupantes do imóvel, sendo bastante que se promova a citação editalícia.

12. O Ministério Público Federal cumpriu rigorosamente os cânones da lealdade processual a que estava obrigado, indicando no polo passivo um rol imenso de pessoas, não sendo razoável exigir que pudesse fazê-lo em relação a todos os ocupantes. Evidente que um processo de ocupação costuma sofrer constantes mutações, de modo que a cada dia pode haver uma nova relação de pessoas na área litigiosa.

13. Não sendo oferecida oportunidade de apresentação de memorais ou de alegações finais a nenhuma das partes, não se pode falar em tratamento diferenciado em relação às mesmas. Ademais, inexiste qualquer outro prejuízo a ser reconhecido, especialmente porque essa oportunidade encerra mero exercício de argumentação, a partir dos elementos de provas contidos nos autos.

14. De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a demarcação administrativa, homologada pelo Presidente da República, é ato estatal que se reveste de presunção juris tantum de legitimidade e veracidade, possuindo natureza declaratória e força auto-executória (RE 183.188, Rel. Min. Celso de Mello e PET n. 3.388-4 RR, Rel. Min. Carlos Britto).

15. Nessa linha de orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, o Decreto Presidencial de 11/12/1998, que homologou a demarcação administrativa realizada pela FUNAI encontra-se em pleno vigor, não tendo sido contrastado por nenhum dos atuais ocupantes do imóvel, nem mesmo por aqueles que se apresentam como proprietários, pois a ação foi ajuizada antes de sua edição.

16. O pedido de reconhecimento judicial da demarcação efetivada pela FUNAI, assim como a declaração de nulidade do título de propriedade da LIQUIFARM AGROPECUARIA SUIÁ-MISSÚ, restaram prejudicados, porque referidas providências já decorrem diretamente do próprio Decreto Presidencial de 11/12/1998, que declarou a área objeto da ação como terra indígena, incorporando-a de forma definitiva no rol dos bens da União, nos termos do artigo 20, inciso XI da Constituição Federal, de modo que o direito de propriedade da União declarado pelo ato administrativo em análise reveste-se dos requisitos de inalienabilidade e indisponibilidade, sendo nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras identificadas, nos termos do § 6º do artigo 231, da Constituição Federal.

17. Noutras palavras, na medida em que a União editou o ato declaratório de que se trata, o título de propriedade expedido em favor da LIQUIFARM AGROPECUÁRIA SUIÁ-MISSÚ S/A, registrado no Município e Comarca de São Felix do Araguaia/MT, no que for coincidente com a área demarcada pela Portaria nº 363/93, do Ministério da Justiça, objeto da homologação presidencial, restou nulo e extinto, nos exatos contornos do § 6º, do artigo 231, da Constituição Federal.

18. Não procede a invocação da peculiar proteção conferida por Registro Torrens em favor dos réus, pois, a toda evidência, inexiste título de propriedade a ser protegido por essa modalidade de registro cartorial, que somente poderia produzir as consequências alegadas caso não fosse nulo e sem qualquer efeito jurídico o suposto título de propriedade, forjado sobre área de ocupação tradicional por comunidade indígena.

19. Do mesmo modo, não produzem efeitos jurídicos quaisquer atos que tenham por objeto a ocupação e a posse sobre referidas terras, as quais se destinam à posse permanente da respectiva comunidade indígena, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, consoante artigo 231, e parágrafos, da Constituição Federal.

20. Contudo, a entrega da tutela jurisdicional, relativamente aos demais pedidos dos autores, requer o enfrentamento da questão controvertida constante dos autos, ou seja, a invocação de direitos originários sobre as terras, porque consideradas de ocupação tradicional pelos índios Xavante Marãiwatséde, cuja pretensão encontrou resistência na defesa dos réus. Releva observar que toda a produção probatória foi direcionada para esse ponto, resultando, pois, na necessidade de revolvimento das questões suscitadas pelas partes no curso da ação, por força natural do efeito devolutivo do recurso em sua perspectiva vertical.

21. Para efeito de estabelecimento do marco da tradicionalidade da ocupação, importa saber se à época da promulgação da Constituição Federal de 1988 os índios Xavante Marãiwatséde eram ocupantes habituais da área posteriormente demarcada e homologada por Decreto Presidencial, objeto da ação, ou se delas foram desalojados anteriormente, em virtude de esbulho praticado por não-índios [STF, PET 3.388-4 – RR, DJe nº 181, de 25/09/2009].

22. O Laudo Pericial Antropológico, fartamente instruído por documentos históricos, corrobora as assertivas contidas no Parecer da FUNAI, não deixando margem a nenhuma dúvida de que a comunidade indígena Xavante Marãiwatséde foi despojada da posse de suas terras na década de sessenta, a partir do momento em que o Estado de Mato Grosso passou a emitir título de propriedade a não-índios, impulsionados pelo espírito expansionista de “colonização” daquela região brasileira.

23. As provas dos autos revelam, escandalosamente, as condutas espúrias praticadas pelos dirigentes da Agropecuária Suiá-Missú, no ano de 1966, quando promoveram uma verdadeira expulsão dos indígenas de suas terras. Primeiro submetendo-os a extrema necessidade de sobrevivência, em função da acentuada degradação ambiental, que resultou na drástica redução dos meios de subsistência e posterior alocação dos mesmos em uma pequena área alagadiça onde ficaram expostos a inúmeras doenças.

24. Em seguida, dissimulando os atos de violência num suposto espírito humanitário, articularam a transferência da comunidade indígena Xavante Marãiwatséde para a Missão Salesiana de São Marcos para, alguns anos depois, requerem junto à FUNAI uma certidão atestando a inexistência de aldeamento indígena nas referidas terras, a fim de respaldar a obtenção de financiamento junto à SUDAM.

25. Pode-se até admitir a asserção de que não havia mais índios naquelas terras por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988, mas não se pode negar a verdade de que isto se deu em razão da referida expulsão, urdida maliciosamente pelos dirigentes da Agropecuária Suiá-Missu, na década de sessenta. Talvez não houvesse índios naquelas terras no ano de 1988, mas decerto que ainda havia a memória de seus antepassados, traduzida no “sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica”, no dizer do Min. Carlos Britto, no julgamento do caso que ficou conhecido como “Raposa Serra do Sol” [PET n. 3.388/RR].

26. Nesse contexto, restou claro que a posse de todos os Réus sobre a área objeto do litígio é ilícita, e de má-fé, porque sabedores de que se tratava de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios Xavante Marãiwatséde, tanto que assim fora reconhecido posteriormente por ato do Presidente da República. Logo, trata-se de posse ilícita, e de má-fe, sobre bem imóvel da União, circunstância da qual não decorre nenhum direito de retenção.

27. Ficam superadas as decisões monocráticas que concederam efeito suspensivo ao presente recurso, ante o seu julgamento de mérito, de modo que os Autores estão autorizados a adotar as providências necessárias ao cumprimento do julgado, observadas as diretrizes processuais pertinentes, até porque o Decreto Presidencial que homologou a demarcação da área possui força auto-executória, consoante consolidado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, e se encontra em pleno vigor.

28. A execução do julgado não dispensa a realização de estudos adequados a serem procedidos pela FUNAI e pela UNIÃO, através de seus órgãos estratégicos, tendo em vista a necessidade de evitar o acirramento do conflito na área litigiosa, a fim de que o cumprimento do julgado seja feito na perspectiva de causar o menor sacrifício possível para as partes envolvidas, circunstância que será equacionada pelo douto juízo federal encarregado do cumprimento da decisão.

29. Remessa oficial parcialmente provida, apenas para excluir a condenação do INCRA, que não faz parte da relação processual.

30. Apelações dos Réus não providas.

ACÓRDÃO

Decide a Quinta Turma do TRF/1ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento à remessa oficial, apenas para excluir a condenação do INCRA, que não faz parte da relação processual, e negar provimento às apelações dos réus, nos termos do voto do Relator.

 

 

 

APELAÇÃO CÍVEL n. 2007.01.00.051031-1/MT

Processo na Origem: 9500006790

 

RELATOR

:

DESEMBARGADOR FEDERAL FAGUNDES DE DEUS

RELATOR

:

JUIZ FEDERAL PEDRO FRANCISCO DA SILVA (CONV.)

APELANTE

:

ADMILSON LUIZ DE REZENDE

ADVOGADO

:

HUGO SAMUEL ALOVISI

APELANTE

:

ANTONIO MAMED JORDAO E OUTROS(AS)

ADVOGADO

:

MARCIO GOULART DA SILVA E OUTROS(AS)

APELANTE

:

ALEXANDRE JOSÉ CRETONE

ADVOGADO

:

MÁRCIO GOULART DA SILVA E OUTROS(AS)

APELANTE

:

AGIP DO BRASIL S/A

ADVOGADO

:

ALCIDES LUIZ FERREIRA E OUTROS(AS)

APELANTE

:

JOÃO AVELINO MODES STEIN E OUTROS(AS)

ADVOGADO

:

MARIA LUCIA DE FREITAS STEIN E OUTROS(AS)

APELANTE

:

NEIVO SPIGOSSO E CONJUGE

ADVOGADO

:

ADEMIR JOEL CARDOSO E OUTROS(AS)

APELANTE

:

JURANDIR DE SOUZA RIBEIRO

ADVOGADO

:

RAQUEL CRISTINA ROCKENBACH BLEICH

APELANTE

:

ADELINO AUGUSTO FRANCISCO E OUTROS(AS)

ADVOGADO

:

LUIZ FRANCISCO CAETANO LIMA

APELADO

:

FILEMON GOMES COSTA LIMOEIRO

ADVOGADO

:

ROMES DA MOTA SOARES

APELADO

:

MIGUEL MILHOMEN DOS SANTOS E OUTRO(A)

ADVOGADO

:

DALTON ADORNO TORNAVOI

APELADO

:

ONOFRE ANTONIO MENEGHESSO

ADVOGADO

:

MONIA ROBERTA SPAULONCI PARRA

APELADO

:

PAULO TADEU RIVALTA DE BARROS E OUTRO(A)

ADVOGADO

:

ALESSANDRO JACARANDA JOVE E OUTRO(A)

APELADO

:

VERENA MARIA BANNWART SUAIDEN

ADVOGADO

: