E quando a gente acha que já viu de tudo, surpreende-se. Pois parece que o governo federal está com saudades da ditadura…
A Advocacia Geral da União (AGU) publicou a portaria 303/2012, nesta terça (17), para orientar o trabalho de seus advogados e procuradores em processos envolvendo terras indígenas. Sob a justificativa da soberania nacional, prevê que o governo federal possa intervir nessas áreas sem a necessidade de consultas às comunidades envolvidas ou à Funai.
Ou seja, instalar unidades ou postos militares, construir estradas ou ferrovias, explorar alternativas energéticas (leia-se hidrelétricas, termelétricas, usinas nucleares, entre outros) ou resguardar “riquezas de cunho estratégico” para o país – minerais ou vegetais, por exemplo.
A Constituição Federal, no seu artigo 231, afirma que a exploração de recursos hídricos e a construção de usinas hidrelétricas só podem ser feitas com a autorização do Congresso Nacional, desde que ouvidas as comunidades atingidas. Ao mesmo tempo, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, do qual o Brasil é signatário, estabelece que as populações tradicionais devem ser consultadas em situação assim.
Com base nisso, o Ministério Público Federal vem cobrando o respeito à lei por parte do governo federal, não apenas no caso da construção da usina de Belo Monte, mas em outros, como o das comunidades ribeirinhas afetadas por um projeto de desenvolvimento federal [1], em Barcarena, também no Pará.
A AGU usa como justificativa que, com essa portaria (que pode ser consultada no site do Diário Oficial [2]), acata decisão do Supremo Tribunal Federal baseado na definição de condicionantes, em 2009, para a efetivação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. Só que a corte afirmou que as condicionantes para demarcação valiam para aquele caso e não, necessariamente, para outros. O governo federal aproveitou a brecha e passou um pacotão do seu interesse. Ignorar os indígenas antes de implantar projetos é apenas um ponto.
O fato já foi celebrado na rede por alguns que se denominam progressistas e esclarecidos e fazem coro com parte da Esplanada dos Ministérios e do empresariado nacional e internacional, sempre clamando para que entraves ao crescimento sejam retirados a todo o custo.
Fazem contas para mostrar que a vida de algumas centenas de famílias camponesas, ribeirinhas, quilombolas ou indígenas não pode se sobrepujar sobre o “interesse nacional” – pessoal, na verdade, mas socializando fica mais fácil de engolir. Taxam de “sabotagem sob influência estrangeira” qualquer atuação no sentido de evitar que “progresso” trague o país.
Sobre isso, recomendo a leitura do Relatório de Impacto Ambiental de certos grandes projetos. Há centenas de críticas à implantação das obras, prova-se que as conseqüências à população e ao meio serão imensas, que no longo prazo os empregos gerados não acompanharão o desemprego movido pelas desapropriações de terras. E, no final, vem a conclusão cara-de-pau autorizando a obra apenas com uma meia dúzia de sugestões (como origamis de passarinhos, carrancas colocadas na curva do rio, festas juninas para alegrar o povo…) a fim de minimizar o impacto. E com um passivo ambiental que não atrapalha ninguém.
Por que um grupo inteligente e esclarecido de formadores de opinião considera que o pessoal das cidades pilhar as comunidades tradicionais no campo é muito diferente do Centro mundial pilhar a Periferia? Os resultados são iguais e a história está aí para mostrar as tragédias causadas quando quem detinha o poder e disse representar a maioria subjugou as minorias. Sendo que, no Brasil, o que acontece com uma minoria em uma aldeia da Amazônia repete-se metonimicamente por todo o território. O problema é igual, mudam apenas os atores.
O desenvolvimento em curso na Amazônia, no Cerrado e o no Pantanal, por exemplo, privilegia apenas uma camada pequena da população. Os lucros advindos da implantação de grandes empreendimentos permanece concentrado na mão de poucos, enquanto o prejuízo é dividido por todos. Vale lembrar o exemplo de municípios como Coari (AM), rico em royalties do petróleo e derivados, mas com baixo índice de desenvolvimento humano.
Esse pragmatismo exacerbado, de que são necessários perder os peões para se ganhar uma partida de xadrez, é muito triste. Ainda mais quando vêm de pessoas que, desde a ditadura, lutam pela liberdade e a efetivação dos direitos.
Somos bombardeados diariamente com argumentos rastaquelas. Já virou um mantra setores do governo dizerem que “ou o Ibama libera a obra X ou o governo começará a procurar outras fontes de energia como a térmica ou nuclear”. Esse comportamento do tipo “ou libera o que quero ou eu furo seus olhos” pode ser considerado em determinadas sociedades como chantagem. O interessante é que aqui, ninguém usa como alternativa a energia eólica, a solar ou a proveniente da biomassa como opções, o que mostra qual avançado é nosso modelo de desenvolvimento.
Como já disse aqui, o atual governo parece que se esqueceu que os que ficaram pelo caminho na luta pela redemocratização não morreram apenas por direitos civis e políticos – mas também pelos sociais, econômicos, culturais e ambientais, ou seja, por uma outra forma de ver e fazer o Brasil. Não era apenas para poder se expressar e votar, mas para que aqueles que eram vítimas de arbitrariedades e tinham suas casas derrubadas em nome do progresso, desse que é “um país que vai pra frente”, pudessem ter uma alternativa além do “ame-o ou deixe-o”.
Desse ponto de vista, como justificar diferenças entre o discurso de uma época em que abríamos grandes estradas sobre terras indígenas para o momento em que construímos gigantescas hidrelétricas em outras reservas, xingando os opositores de “arautos do atraso” ou acusando-os de fazer o jogo do “inimigo externo”?
Muita coisa mudou desde que os verde-oliva deixaram o poder, naquela abertura “lenta, gradual e segura”, mas mantivemos modelos de desenvolvimento que dariam orgulho aos maiores planejadores daquele período: de que, para crescer rapidamente e atingir nosso ideal de nação, vale qualquer coisa, passando por cima de qualquer um.
A verdade é que o “inimigo externo” também somos nós. Massacres que ocorreram em nome do “interesse nacional” tornaram nossa vida mais fácil, possibilitando a manutenção de nossoAmerican Way of Life.
Durante a construção da BR-174, que cortou o território Waimiri Atroari, entre Roraima e o Amazonas, o exército brasileiro controlado pela Gloriosa quase levou à extinção o povo kinja na década de 70. Há relatos de bombas lançadas por aeronaves na população. Outros relatos apontam o massacre de indígenas no Mato Grosso na década de 60, quando fazendeiros, com o apoio de representantes do Estado, teriam lançados objetos contaminados com doenças, como sarampo, nas aldeias indígenas. Reestabelecida a democracia, casos assim continuaram. Há denúncias de que pecuaristas, temendo que suas terras viessem a ser devolvidas aos indígenas isolados que nelas viviam no Sul de Rondônia, mandaram dar açúcar de presente à tribo. O que não avisou a eles é que o açúcar tinha sido temperado com veneno de rato. Isso sem contar as usinas em construção que empurram, com promessas, os indígenas para fora de suas terras.
Tudo isso com o silêncio anuente de boa parte da sociedade. E com o silêncio produzido à força da outra parte.