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Ateus e pós-seculares – dois interlocutores da missão ad gentes

“Estou convencido de que há de se seguir dizendo não,

ainda que se trate de uma voz predicando no deserto”.

José Saramago

 

“Marx diz que as revoluções são a locomotiva da história,

mas talvez seja tudo muito diferente, e as revoluções representem

tentativas da humanidade (…) de puxar o freio de emergência”.

Walter Benjamin

 

O diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura da Conferência Episcopal Portuguesa, o padre José Tolentino, declarou que com a morte de José Saramago, dia 18 de junho p. p., Prêmio Nobel de Literatura de 1998 e ateu confesso, “a Igreja perde um crítico com o qual soube dialogar constantemente”.[1] [1] Nas categorias do censo do CERIS[2] [2], de 2004, com enfoque na migração religiosa, Saramago pertence ao pequeno grupo de 7,8% dos que se declaravam “sem religião”.[3] [3] Na pesquisa do CERIS, os “sem religião” são compostos por cinco categorias diferentes. “Sem religião” pode significar, “possuir uma religiosidade própria sem vínculo com igrejas” (41,4%); pode significar também “não frequentar nenhuma igreja e não possuir crenças religiosas” (29,4%), “não acreditar nas religiões” (15,1%), “não ter tempo para frequentar a igreja” (23,2%), e “não acreditar em Deus” (0,5%). Portanto, dos 7,8% “sem religião”, só meio porcento se declara ateus.

 

Saramago, no Portugal, como Dráuzio Varella, por exemplo, no Brasil, pertencem ao pequeno grupo de pessoas que não acredita na existência de Deus. Varella, que se declara “ateu desde criança”, apela a sua formação científica que lhe permite explicar melhor o surgimento do ser humano pelo acaso do que pela mão de um criador divino. Como acreditar, pergunta Varella, que Deus, 65 milhões de anos atrás, deixou cair um asteroide no planeta Terra, precisamente na Península de Yucatán, cuja queda produziu a extinção dos dinossauros. Estes impediram por 225 milhões de anos o crescimento de uma fauna da qual surgiram os ancestrais humanos.

 

Parece oportuno no Comina, que reúne institucionalmente iniciativas missionárias organizadas na Igreja Católica, refletir sobre esses novos destinatários da missão ad gentes cujas respostas aos enigmas da vida dispensam qualquer crença na existência de Deus. Ao lado destes “sem religião” ou “pós-metafísicos” surgiu o grupo dos “pós-seculares”. Frustrados com certos aspectos da modernidade deixaram o pensamento secular de lado e voltam novamente ao mundo religioso com suas promessas de prosperidade e configurações esotéricas, idolátricas e terapêuticas. O mundo pós-secular desmente a tese do progressivo desaparecimento da religião pela secularização (Max Weber). Não se trata de um fenômeno que permite aos cristãos cantarem vitória. A religião dos pós-seculares é composta por muitas religiões. Precisa "muita religião, seu moço! (…) Uma só, para mim é pouca”, diz o Riobaldo do "Grande Sertão" de Guimarães Rosa.[4] [4] Na religião dos pós-seculares encontra-se a religião do cangaceiro com a religiosidade do traficante de droga, que antes do assalto a um Banco invoca a proteção de Nossa Senhora e depois, na cadeia, se torna crente. Mas nem todos os pós-seculares são traficantes. A religiosidade pós-secular não assume um compromisso com Deus, nem com verdade e racionalidade. Ela serve para criminosos e zeladores pela ordem, para exóticos e góticos, para prósperos e pobres. Trata-se de um mundo religioso caracterizado por certa regressão infantil e sem responsabilidade com o próximo, além daquilo que a lei civil prescreve.

 

Por conseguinte, a missão ad gentes está diante de dois interlocutores que até hoje não foram suficientemente enfocados: num extremo estão os sem religião e os sem Deus que, segundo Dráuzio Varella “estão saindo do armário”, e no outro lado estão os sem Deus com uma religiosidade funcional e descompromissada. Em ambos os contextos é preciso, antes de apelar à natureza missionária e sua explicitação semântica (cf. AG 2; DAp 347), cultivar a capacidade dialogal dos missionários que lhes permite um transito respeitoso e respeitado nesses ambientes. A missão ad gentes é antes de tudo uma missão testemunhal que sabe antes de falar, viver a razão de sua esperança (cf. 1 Pdr 3,13-16) nos códigos culturais desses interlocutores. O diálogo com o outro, que não quer conversão, mas respeito com sua opção ideológica exige do missionário não só informação sobre seus próprios artigos de fé, mas também sobre aquilo que se discute nos Areópagos do mundo (cf. DAp 491). Além dessas informações fundamentais precisa saber, que todo seu saber sobre Deus é um saber analógico. O saber das ciências, grosso modo, trabalha com adequações, não com analogias. Mas também o saber do outro, seja científico ou multirreligioso, sempre se esgota no portal do mistério. Crentes e descrentes não têm um acesso privilegiado às origens do cosmo.

 

Acreditar, por exemplo, no surgimento dos seres humanos pelo acaso exige tanta fé como acreditar que de um saco de letras jogadas no chão poderia sair um poema de Drummond de Andrade. Acreditar no acaso do processo evolutivo não exige menos fé do que acreditar no dedo de Deus. O mistério da fé é profundo. Antes das perguntas sobre o processo da evolução caberia a pergunta: E os dinossauros, de onde surgiram? Por que existe algo, que se pode desenvolver, e não nada? É a pergunta que Heidegger faz na sua Introdução à Metafísica (1953): “Por que existe ser (ente, algo) e não antes nada”? É também a pergunta fundamental da cosmologia que procura explicar a origem do universo. A síntese produzida entre fé e ciências por Agostinho e que prevaleceu até Tomás de Aquino, hoje está rachada. O saber secular não se mistura com o saber revelado do judeu-cristianismo salvífico. As ciências “exatas” pesquisam aspectos parciais e particulares dos seus objetos. As questões de filosofia e religião estão relacionados com os sujeitos e sua capacidade cognitiva, narrativa e praxistica. Na explicação da totalidade, a religião ficou desamparada.

 

Faz meio século que vivemos uma despedida estrutural de todas as perguntas sobre totalidades imagináveis, hoje denunciadas como “grandes narrativas” autoritárias e ideológicas. Vivemos num mundo do “pós”, do “postismo” e da fragmentação das totalidades. Vivemos num mundo pós-moderno, pós-estrutural, pós-marxista, pós-secular. Antes do por do sol, o hoje já se tornou ontem e o que era ou se poderia tornar tradição, já se tornou doutrina contestada, fragmento, contexto, contingência, transitório. Neste mundo, Deus, verdade e razão – em sua compreensão teórica e existência real – são sociocultural e historicamente situados e relativizados. Pressionados pela aceleração do tempo cultural e produtivo, têm prazos de vencimento e estão submetidos a imperativos de releituras e reinterpretações.

 

A fragmentação daquilo que compreendemos como realidade rompeu com tradições ou explicações de longa duração, quebrou a imagem de um Deus a-histórico, vetou o acesso a uma compreensão da verdade como eterna e preestabelecida, e nos confronta com uma razão dialeticamente rachada em razão vivencial e instrumental. Nos diferentes cristianismos convive o Deus da gratuidade com o Deus da prosperidade, o Deus Todopoderoso (el shadai) com o Cordeiro de Deus imolado e crucificado.

 

Em seu Fedro, o Sócrates de Platão afirma, que a escrita é uma dádiva divina ambivalente. Ela é um pharmakón; é remédio, veneno e cosmético.[5] [5] O que Platão disse da escrita, vale também para a palavra, o logos, que é três em um; é Deus, verdade e razão. “No princípio era a Palavra (o logos), e a Palavra estava junto de Deus, e a Palavra era Deus” (Jo 1,1). Os três – Deus, verdade e razão – nas obras e palavras humanas, podem ser, como o pharmakon de Sócrates, remédio, veneno e cosmético. Deus pode ser anunciado como logos libertador (remédio), que se despojou e encarnou (“o Verbo se fez carne”), pode ser distribuído na clandestinidade como ópio (veneno) e pode ser aplicado como cosmético de poder e prosperidade; a verdade pode ser liberdade, opressão autoritária e ideologia, que é uma forma de mentira. E a razão pode ser razão de vida e razão a serviço da morte, do mercado e de maquiagem. No meio desta selva polissêmica, como traduzir para o mundo de hoje: “No princípio era o Verbo”, no princípio era Deus que se fez carne, e que é verdade e razão de vida?

 

Como Igreja missionária estamos entre o mundo ateu, entre os crentes no acaso da existência humana e o mundo pós-secular. O mundo pós-secular é o mundo daqueles que estão de volta da montanha da secularização. Querem novamente, numa fase regressiva, mamar nos peitos da religião, sem compromisso com Deus e sem responsabilidade por uma comunidade. Os pós-seculares compõem-se, no mercado religioso, uma cesta básica, um jogo de unidades curativas e lucrativas. Religião, nesta constelação, é um programa terapêutico de mitigação, de consumo e acumulação. O mundo pós-secular é o mundo aborrecido com o mundo adulto, com a autonomia, a igualdade e a liberdade. Não enfrenta os abusos da modernidade secular, mas se contenta com elementos compensatórios e alienantes das religiões, em aliança com elementos da pré e pós-modernidade.

 

O mundo dos ateus representa um aspecto da modernidade que não exerce grande atração ou tentação para a Igreja. Já o mundo pós-secular, que muitas vezes não se diferencia do mundo pré-secular da cristandade, o mundo de escolha religiosa múltipla, unindo elementos da pré-modernidade com elementos da pós-modernidade, este sim – como vimos na recondução da chamada Fraternidade Pio X à Igreja Católica (pelo preço de banana!) – exerce certa sedução para o pensamento católico e exige vigilância dobrada. Para os missionários é mais fácil ceder à regressão pré-moderna e pós-secular que para tudo oferece explicações religiosas, do que ir ao encontro dos ateus, que para muitas situações vivenciais estão sem consolo, inclusive estão sem consolo para os mortos injustiçados. Realmente, numa situação terapêutica e pastoral, é mais difícil ser missionário da libertação anunciando, como imperativo evangélico, um novo modelo civilizatório na contramão do pensamento hegemônico, sem prometer prosperidade e consolo imediato. A situação missionária entre ateus é mais clara do que entre os pós-seculares que fingem serem os representantes da verdadeira religião de Jesus Cristo.

 

Qual é o querigma missionário a ser anunciado nos dois mundos que representam, por um lado, uma incompatibilidade entre fé e ciência e, por outro lado, a distância entre uma religião de revelação e a de self-service? Entre a ciência secular e o saber revelado por Deus é difícil encontrar mediações. Trata-se de dois níveis diferentes. Isso não quer dizer, que o cientista seja necessariamente um ateu. Ele pode ser crente sem ser incoerente com a ciência. O bom cientista conhece os limites de sua disciplina. A fé é uma opção que não contradiz a ciência. A interlocução missionária se situa no lugar do facilitador e catalisador dessa fé possível. Ao mesmo tempo que o missionário reconhece positivamente a independência da ciência e a neutralidade religiosa do Estado secular, é ele, montado nos ombros da ciência, que ve mais longe.

 

Um pós-secular da múltipla escolha não é propriamente um seguidor de Jesus Cristo, mas um interlocutor da missão. Neste caso, missão significa transformar a perspectiva da prosperidade em perspectiva de gratuidade, o narcisismo em altruísmo e solidariedade, significa afunilar os múltiplos caminhos e escolhas no Caminho único que é Jesus Cristo, na dialética messiânica do Servo de Javé, de cruz e ressurreição.

 

Um agnóstico como Habermas nos lembra de três dons, que são ao mesmo tempo tarefas próprias do cristianismo para o mundo secular. O mundo civil e o estado secular (neutro em sua aceitação das religiões) não podem oferecer: solidariedade, ritualidade e comunidade.[6] [6] Observa-se hoje uma tendência, estimulada pelo mercado e pela concorrência laboral, que produz em muitos setores da sociedade uma desolidarização. O cristianismo tem a tarefa de criar uma consciência dessa solidariedade ferida, uma consciência para aquilo que falta, para a injustiça que grita para o céu. A dignidade humana exige ritos, ritos de acolhida, de passagem, de despedida que a sociedade secular não oferece. O missionário relaciona seus mistérios de fé não só com outras religiões, mas também com a ciência e sua produção do saber secular. Missão significa tradução e articulação. O cristianismo tem a vocação de aglutinar comunidades em redes universais, não em torno de casos isolados, mas em torno de uma causa comum: a vida da humanidade e das futuras gerações.

 

Talvez seja hoje uma das tarefas missionárias mais importantes, convencer as próprias Igrejas como também os irmãos não crentes e pós-seculares que é preciso somar forças para “desafinar o coro dos contentes” (Torquato Neto) e desgovernar a nau dos adaptados que se contentam com o pouco que o gozo regressivo à fase oral e anal (Freud) via consumo e acumulação de maneira destrutiva oferece; puxar o freio de emergência do projeto acelerado e desgovernado em curso e propor outro projeto civilizatório que contempla a todos.

 

Paulo Suess, Assessor Teológico do Cimi

 



[1] [7] Cf. ESTADO DE S. PAULO, 19.6.2010, H2, Especial.

[2] [8] Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais.

[3] [9] Segundo essa mesma pesquisa do CERIS, a população brasileira é constituída de: 67,2% católicos, 4,1% evangélicos históricos, 13,9%  evangélico de corte pentecostal, 3,4% pertencem a outras religiões e 7,8% se declaram “sem religião”. Cf. ALVES FERNANDES, Sílvia Regina (org.). Mudança de religião no Brasil: desvendando sentidos e motivações. Rio de Janeiro; São Paulo: CNBB; CERIS; Palavra & Prece, s.d., p. 62.

[4] [10] ROSA GUIMARÃES, João. Grande sertão: veredas. 13a ed., Rio de Janeiro: José Olimpio, 1979, p. 15.

[5] [11] PLATÃO. Fedro. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 118 [274 d, 275 a, b].

[6] [12] Cf. REDER, Michael; SCHMIDT, Josef (org). Ein Bewußtsein von dem, was fehlt. Eine Diskussion mit Jürgen Habermas. Frankfurt, Suhrkamp, 2008, p. 28ss.