Quem tem legitimidade para decidir o que é vida, o que é ético, o que é humano? Essas são indagações que Marianna Holanda faz em sua dissertação de mestrado, defendida no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. No estudo, a antropóloga avalia o Projeto de Lei 1.057/07, que trata da criminalização do chamado infanticídio indígena – prática de algumas tribos em relação a neonatos com deficiências que impedem a socialização de acordo com o padrão de cada etnia. O PL está na pauta da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados desta quarta-feira, 24 de junho.
“Diante do que chamamos juridicamente de infanticídio, não cabe falar em infanticídio indígena. O que há nessas aldeias são estratégias reprodutivas pensadas em prol da comunidade, e não de indivíduos isolados – e só um número muito reduzido de crianças acaba sendo submetido a elas”, diz Marianna, autora da dissertação intitulada Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. “E são crianças com problemas que, mais tarde, impossibilitarão qualquer tipo de socialização”, completa.
Segundo a antropóloga, para os índios, sem socialização a criança jamais atingirá a humanidade plena. Por isso, ela dedicou uma parte do trabalho para entender como se constitui a noção de humanidade entre os indígenas. “Esse é um dos pontos centrais do estudo: o que nós, brancos, entendemos como sendo vida e humano é diferente da percepção dos índios. Um bebê indígena, quando nasce, não é considerado uma pessoa – ele vai adquirindo pessoalidade ao longo da vida e das relações sociais que estabelece”, explica.
De autoria do deputado Henrique Afonso (PT-AC), o PL 1.057/07 é contestado por antropólogos que atuam em comunidades indígenas. O estudo de Marianna sugere que as formas próprias que cada povo desenvolve para resolver seus conflitos internos devem ser respeitadas. “O projeto impõe uma categoria jurídica ocidental a uma diversidade de povos, desrespeitando as diferenças e as especificidades”, afirma.
INTRUSÃO – Para a professora Rita Segato, que orientou a dissertação de mestrado de Marianna, o PL é uma forma de “calúnia” aos povos indígenas. “O projeto cria uma imagem absolutamente distorcida da relação entre os índios e suas crianças. Essa lei ofusca a realidade e declara os índios bárbaros, selvagens, assassinos. É muito semelhante à acusação, comum em tempos passados, de que os comunistas comiam criancinhas”, compara.
A docente lembra, ainda, que na legislação brasileira o direito à vida já está assegurado. “A Constituição e o Código Penal preveem que é proibido matar. Nesse aspecto, o PL é redundante”. Segundo ela, o verdadeiro propósito da nova lei não é zelar pela vida das crianças, mas “permitir a vigilância e a intrusão permanente nos costumes e na intimidade das aldeias”.
DIÁLOGO – A pesquisa também aponta a necessidade de incluir os indígenas nas discussões que lhes dizem respeito. “Não se pode chegar a uma conclusão ou a um projeto de lei sem a participação efetiva dos maiores interessados: os índios. E eles só foram ouvidos uma única vez, em uma audiência pública em 2007, e mesmo assim tiveram pouco espaço para falar”, conta Marianna.
Para ela, o destino das crianças que nascem com problemas graves e impeditivos de qualquer tipo de socialização deve ser resolvido pelos próprios indígenas. “Eles acreditam que têm autonomia para resolver seus problemas sozinhos – e se não acreditarmos nessa capacidade, estaremos, ainda, colonizando”, observa. “Deixar que eles encontrem seus caminhos e tomem suas decisões é o mínimo de autonomia que podemos fornecer”, reforça a pesquisadora.
Rita Segato lembra que o Brasil é signatário da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela Organização das Nações Unidas em 2007. “No documento está dito que não se pode criar leis que afetem a vida dos índios sem ter a participação deles na discussão e elaboração dessas leis. E esse requisito não foi respeitado no PL que ora se apresenta”.
Segundo Rita, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) já se manifestou, pedindo o arquivamento do PL, que na Comissão de Direitos Humanos tem a relatoria da deputada petista Janete Rocha Pietá (SP).
Maiesse Gramacho
Da Secretaria de Comunicação da UnB