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Indígenas defendem descolonização da democracia no continente

Povos originários elegem a relação com o Estado como discussão central no contexto do FSM 2006. Demandas e visões indígenas são consideradas essenciais para uma integração verdadeira. Mulheres defendem valorização de princípios e “luta conjunta”.


 


Maurício Hashizume – Carta Maior


 


CARACAS – “A democracia precisa ser descolonizada” e “a esquerda fracassou no passado porque não reconheceu as identidades indígenas”. As fortes declarações sobre a relação entre os povos originários da América Latina e o Estado, de autoria de Humberto Cholango, liderança da Confederação de Povos e Nacionalidade Kichwa do Equador (Ecuarunari), são amostras do posicionamento adotado pelas organizações indígenas no Fórum Social Mundial 2006.


 


Os povos indígenas lutaram nos processos de emancipação das colônias da América Latina, mas acabaram ficando de fora na construção dos Estados nacionais. Introduzir a visão e as demandas dessa parcela historicamente excluída seria, na opinião de Cholango, o primeiro passo no sentido de avançar no sentido de uma integração verdadeira dos povos da América Latina.


 


“Não somos simplesmente complemento da paisagem. Queremos ter um papel político nacional e internacional”, reivindica o líder equatoriano. O principal objetivo colocado para os povos indígenas consiste na construção própria de políticas de Estado. De acordo com ele, as propostas de políticas públicas não podem continuar sendo resultado das preocupações e interesses apenas de intelectuais, gestores, partidos, etc. “Defendemos o socialismo comunitário ou intercultural, que incorpora a experiência dos povos originários”, afirma Cholango, destacando inclusive a viabilidade da adoção de sistemas econômicos e produtivos alternativos próprios das comunidades indígenas como a “minga”, trabalho comunal tradicional do povo Inca.


 


As inquietações do presidente da Ecuarunari encontram ressonância na posição dos bolivianos da Conselho Nacional dos [povos] Marcas e Ayllus [da civilização pré-hispânica] de Collasuyo (Conamac), que questionam a divisão política do território e lutam pela restituição das autoridades originárias de seus povos. O Collasuyo foi uma das quatro partes do “Estado” Inca.


 


“A América é dos povos originários e foi invadida”, reforça Marinaldo Macuxi, do Conselho Indígena de Roraima (CIR). O que ocorre hoje é que os recursos naturais das terras indígenas continuam sendo explorados para a manutenção de uma estrutura de poder das quais eles não participam. “Temos participado de fóruns que muitas vezes não dão resultado. O sofrimento continua. Precisamos levar a questão indígena para uma instância maior”.


 


Ele sugere a realização de um Fórum Mundial dos Povos Indígenas. “A desarticulação em nível internacional ajuda a perpetuar o preconceito e a dimensão destrutiva e racista que afetam todos. Chegou o momento de colocar a proposta de garantir o conhecimento e os recursos aos povos originários. Temos que construir uma agenda indígena internacional e lutar por representantes indígenas em organismos internacionais”.


 


Em que pese a difícil situação dos indígenas no continente, há alguns sinais importantes de avanços. Projeto de lei que garante os direitos dos povos sobre recursos naturais foi aprovado pela Câmara dos Deputados no Chile. “Não há nada legal que nos proteja. Não existimos na Constituição. Na prática, estamos sendo reconhecidos pela primeira vez”, celebra Vladimir Morales, jovem líder da etnia Mapuche. Ele e todos os outros representantes indígenas participaram da mesa “Povos Indígenas e Construção da Nação Sul-Americana”: “Somos o país latino-americano mais privatizado. E esse projeto protegerá apenas o pouco que ainda nos resta”.


 


Mulheres


 


A questão ancestral mística ganhou espaço em outro painel sobre as mulheres indígenas, realizado nesta quinta-feira (26). A guatemalteca Juana Vázquez, da entidade Coração do Povo Maia, discorreu sobre o tema. “Muitas vezes pensamos que a cosmovisão é do passado, e não da atualidade. Se queremos levar uma luta com identidade, de acordo com a nossa visão da vida, é importante resgatar a prática de princípios e valores”, sublinhou. “Nossos povos e nossas famílias estão invadidas de machismo, resultado dos maus tratos, do desprezo. Perdemos a prática de valores e princípios”.


 


Para Juana, cada pessoa tem suas energias. O rasgo machista, portanto, estaria minando as energias femininas. “Quando as mulheres descobrem suas potencialidades, habilidades e conhecimento, a auto-estima se eleva”, coloca. “A partir do descobrimento dessa energia das mulheres, surge o diálogo, o respeito, a valorização. A natureza, para nós, é completa. Temos complementaridades com tudo”.


 


A necessidade de participação maior das mulheres em geral na política (“com suas opiniões, seus critérios”) foi destacada por Blanca Chancoso, da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie). “Temos acompanhado [as lutas] por muito tempo silenciosamente, como filhas, como esposas, etc. Queremos acompanhar o desenvolvimento [de modo mais ativo]”, defendeu. “Não escolhemos o caminho das reivindicações específicas de mulheres indígenas. E fazemos isso não porque negamos as nossas reivindicações próprias com relação à globalização, com a garantia de direitos, mas porque decidimos lutar em conjunto”.