“Podem levar nossos poucos pertences para onde quiserem. Nós não os tiraremos de nossos barracos, pois vamos permanecer na nossa terra, aqui na beira da estrada”.
Essa decisão da aldeia/comunidade Kaiowá Guarani de Nhanderu Marangatu, naquela manhã de 15 de dezembro, projetou-se como uma estrela a guiar esse povo no seu exílio para a beira da MS-384, durante a sua quaresma, rumo à Terra finalmente Sem tantos Males.
A dor na estrada
Nada mais doído para um Guarani, do que privá-lo de seu espaço de vida e liberdade. Nada mais cruel do que devastar e destruir a mãe terra. Nada mais sofrido do que sentir seus filhos ameaçados em sua vida e seu jeito de viver Guarani. Nhanderusu, Tupã, os deuses os espíritos guerreiros estão mobilizados para impedir que essa desgraça aconteça, pois isso poderá acabar com o mundo. E eles apenas querem continuar sendo o que são e assim serem felizes e viver em paz.
Um dia após a expulsão da terra um filho esperado, morre ao nascer. Por causa da prepotência e truculência, seu nascimento e morte foram antecipados.
Dois dias após a expulsão, em meio à poeira e sol sufocantes, uma criança de dois anos, não resiste às intempéries e desnutrição e morre. É velada na beira da estrada.
Passa-se mais uma semana de ameaças enquanto improvisados barracos de umas poucas varas e um pedaço de lona preta cobrem uns poucos metros quadrados, suficientes para o refúgio temporário. Em todos eles dormem lado a lado a indignação e a esperança.
Quando Dorvalino, ao lado da porteira e da armação de um barraco, vai visitar os parentes, é baleado por um segurança da fazendo e morre logo depois. É véspera de Natal. Sentimentos de perplexidade. Jesus que nasce e morre é anunciado e velado na beira da estrada. O ritual de chegada e despedida toma conta do acampamento. A festa da esperança estava preparada. A dor amarga da despedida de um companheiro que teve sua vida colhida em meio à luta pela terra, só é superada pela certeza de que será sangue que fará chegar mais perto terra prometida.
No caminho da esperança
“Como poderemos cantar e dançar na poeira, calor, ameaças e mortes à beira da estrada?”
Ligeiro a notícia da morte de Dorvalino correu o Brasil e o mundo. O recém empossado ministro dos Direitos Humanos, Paulo de Tarso Vannuchi, é atingido pelo sangue Kaiowá Guarani derramado, e como se fosse uma espécie de batismo de fogo vai ao palco dos acontecimentos. Ali chega dia 27, com uma comitiva integrada pela Polícia Federal e Funai.
E no palco da morte vai sendo semeada esperança. Não tanto pelas palavras e promessas abundantes, mas pelo sentimento brotado dos barracos improvisados, armados apenas da certeza de que serão provisórios em sua precariedade, serão o tempo da passagem para a terra que já lhes pertence e da qual estão temporariamente privados. O local do tiro, o local onde Dorvalino caiu já quase sem vida e a terra que cobre seu corpo, ao lado de Dom Quitito e na terra de Marçal, certamente calaram fundo no coração de todos os que ali estiveram.
Que seja breve
Assim que começaram a brotar os barracos, não faltaram as tentativas de livrar-se de tão incômoda realidade. Falou-se em transferir os índios para uma terra do Exército, na região. Sugeriu-se transferir para outros espaços provisórios, longe dos olhares constantes de transeuntes. Enfim, buscou-se esconder a dramática situação. Porém a resposta dos índios foi muito clara e incisiva. “Não estamos aqui porque queremos. Nos jogaram aqui, e aqui ficaremos até voltarmos para nossa terra”.
São dezenas os acampamentos de sem terra e dos expulsos da terra, índios e não índios, ao longo das estradas do Mato Grosso do Sul. Porém Nhanderu Marangatu, no município de Antonio João tem, nesse início de 2006, um forte conteúdo emblemático, pois representa a violência da expulsão da terra e das contradições do sistema de acumulação da terra e dos poderes da República – um reconhece a terra indígena e outro os expulsa da mesma.
Quantos terão ainda que morrer, vítimas das violências e da situação desumana em que estão jogados os Kaiowá Guarani de Nhanderu Marangatu, para que seus filhos possam à sua terra retornar?
Quando fevereiro chegar, os Guarani do Continente celebração a memória de Sepé Tiaraju e de todos os que deram a vida na luta pelo seu povo… E à sua terra os Guarani poderão retornar! E a Terra Sem Males voltará a acolher seus filhos amados!
São Paulo, 3 de janeiro de 2005
Egon Heck
Cimi Regional Mato Grosso do Sul