15/12/2017

Um pé na aldeia, um pé no mundo: Juventude Xakriabá segue os passos da resistência histórica do povo

Em seu 1° Encontro da Juventude, os herdeiros da luta Xakriabá unem-se à labuta de seus caciques, pajés e lideranças

Guilherme Cavalli, da Ascom/Cimi

“Quando caminhávamos nessas matas, um grupo de guerreiros deixava apenas um rastro. A pegada que permanecia era única”. Os passos dos indígenas Xakriabá que marcaram a terra vermelha do norte de Minas Gerais são lembrados hoje como trilha da resistência percorrida em unidade. Os marcos no chão e na história do povo se misturaram com o sangue dos mártires que regam o Cerrado. Foram muitos guerreiros tombados por um único direito. “Nossa resistência se edificou em nosso território. Tombamos para a garantia do lugar sagrado Xakriabá. Hoje são muitos que se erguem nessas terras”.

A jornada lembrada por Zé do Bem Vindo, presença histórica para a demarcação do território Xakriabá, é narrativa que completa 30 anos de luta e martírio. “A resistência dos anciãos e seus passos firmes nessa terra gestou a teimosia das juventudes”, acredita o homem de muitas histórias. No presente, os herdeiros da luta Xakriabá, a jovialidade do povo, unem-se à labuta de seus caciques, pajés e lideranças. “Firmamos compromisso com a história dos nossos anciãos e com o futuro dos nossos filhos”, sustenta Durkwa Xakriabá na abertura do 1° Encontro da Juventude Xakriabá.

Os passos firmados na assembleia que aconteceu de 17 a 19 de outubro – na Aldeia Imbaúba e que reuniu aproximadamente mil jovens – caminham para a valorização da cultura, espiritualidade, identidade e território – assuntos debatidos durante o encontro. “Reafirmamos os mais velhos, caciques, lideranças e pajés como pilares de nossa identidade, nossos livros vivos”, declaram os Xakriabá no documento final. “Nosso território, e por consequência nossa identidade, são motivos de toda vida e existência”, afirma Durkwa Xakriabá.

Na trilha das juventudes, passado, presente e futuro se entrelaçam em espiritualidade, danças, pinturas, debates e rituais. A vida dos mais velhos, seus enfrentamentos, se estendeu além das falas e se manifestou pela presença dos ancestrais. O primeiro dia do encontro foi reservado à memória contada pelos pilares da resistência. “A luta dos jovens é para que ainda nem mesmo chegou nessa terra sagrada. É herança deixada por nós, mais velhos, e que se destina às crianças que estão a caminho. Não lutamos por um ou por outro, mas pelo coletivo”, afirmou Valdemar Xakriabá, liderança da Aldeia Prata.

Na abertura do encontro, enquanto os participantes se acomodavam nas sete tendas erguidas no campo de futebol, entoavam-se músicas de purificação. “Para entrar em nossa aldeia é preciso purificar”, era o refrão cantado. As 33 aldeias foram apresentadas e aspergidas no rito inicial. Com um ramo, Deda Xakriabá conduzia a cerimônia ao dar boas vindas àqueles que chegavam para partilhar. “Trabalhamos em conjunto para passar os conhecimentos sempre atento às manifestações do tempo. Por isso saudamos aqueles que passaram pelo ritual, os presentes e os que virão”, comentava o professor de cultura.

Memória, resistência e juventude. O resgate do processo histórico da luta do povo Xakriabá na defesa dos seus direitos foi elemento transversal das reflexões no encontro. Identidade, cultura, terra e território e protagonismo da juventude indígena no caminho para o Bem Viver foram temáticas debatidas durante os três dias. Fruto de um processo que criou outros novo momentos em aldeias distintas do território, o 1o Encontro da Juventude Xakriabá “foi um momento histórico, onde a juventude selou seu compromisso de raiz ancestral, renascida para ser resistência”, lembra Célia Mīndã Nynthê Xakriabá.

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Herdeiros da Luta

“Faremos deste espaço um solo sagrado. Germinará esperança”, desejou Durkwa. Pediu-se permissão aos encantados, pajés, anciões e caciques a cada manifestação. No mural atrás da mesa de conferência, uma frase conjugava o tom do encontro. “Eu prefiro ser adubo, mas sair daqui eu não vou”, estampava o cartaz com o rosto de Rosalino Gomes de Oliveira. O mártir Xakriabá brutalmente assassinado em fevereiro de 1987, aos 42 anos, encontrava-se rodeado de outras figuras imprescindíveis para a história de resistência. A foto de Rodrigão o acompanhava no centro do palco.

“Na morte de Rosalino e Rodrigão o povo Xakriabá se ergueu. Eles foram sementes plantadas e que germinam seus frutos na juventude que ousa lutar. Eles são frutos desta história e da morte desses guerreiros” , lembra cacique Agenor Xakriabá, liderança da Aldeia Tenda. A pertença à história, suas raízes, presenteia a juventude Xakriabá com uma esperança ativa, que é protagonista. Sabem que são resultados de uma luta e fazem dela a grande causa. “A luta dos nossos antepassados continua com o desejo de um futuro melhor para nossas próximas gerações”, lembrou cacique Domingos Nunes, filho de Rosalino. Após o assassinato de seu pai, Domingos assumiu o cacicado dando continuidade ao sonho antigo de ver o povo Xakriabá livre do domínio dos fazendeiros da região.

O sangue derramado por Rosalino e outras lideranças que tombaram conduziu o povo ao território sagrado. A demarcação do território ocorreu no ano de 1989 – uma outra parte do território, a Rancharia, que ficou de fora deste procedimento por vícios da legislação anterior à Constituição de 1988, teve a demarcação realizada no ano 2000. “Todas as conquistas são resultados e sustentadas pelas lutas de guerreiros e guerreiras. Muitos já tombaram pelos nossos direitos. Daqui pra frente não será diferente e o protagonismo da juventude é de grande importância nesta luta”, assegurou Zé Nunes de Oliveira Xakriabá, filho de Rosalino e atual prefeito de São João das Missões, chamada no século XIX de  São João dos Índios.  “Juventude: é pelo embate e enfrentamento que erguemos os nossos direitos. Se dependermos das políticas nacionais, sabemos que não existiríamos mais”, assegurou Zé Nunes. “O sistema político sustenta e é sustentado pelo capitalismo. Por sua vez, o capital sempre foi aliado a aqueles que trabalha para o extermínio dos povos indígenas”.

Para o indígena, “a caneta do político é uma arma”. Testemunhas dos atuais retrocessos, a alvorada xakriabá firmou conduta diante a conjuntura caracterizada por eles como “desconjuntada”. “As lutas que travamos hoje não são contra revólver ou carabina, como antigamente. Lutamos contra projetos de lei que acabam com nosso direito”, assume Durkwa Xakriabá em fiel congruência com o discurso de Zé Nunes. “Nossos embates são contra canetadas. Mais do que nunca, é preciso ter domínio dos saberes não-indígenas para garantir a nossa ciência tradicional, território e vida”. Durkwa entende o encontro como uma forma de reforçar “a luta das nossas lideranças, das nossas mulheres, a união do povo para garantir os nossos direitos e dar continuidade para as lutas dos nossos ancestrais”.

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

No território da memória

“Certo dia chegou na aldeia um grupo de arquitetos e pesquisadores para observar como fazíamos nossas casas. Eles observaram tudo: desde o moldar do barro até a edificação. No final do processo, veio a pergunta: Quantos anos dura a construção? Por por volta de 5 anos”, respondeu a mulher que ensinava às suas filhas procedimento de construção. Os especialistas ofereceram seus conhecimentos científicos. “Podemos pensar algumas técnicas para que a durabilidade se estenda por mais alguns anos”, disseram. Com sabedoria, a mulher dispensou a boa vontade dos arquitetos. Disse: “Se a casa durar mais do que o necessário, não terei a oportunidade de passar o conhecimento adiante”.

O fato lembrado por Célia Xakriabá trouxe para o debate aquilo que os povos indígenas chamam de conhecimento tradicional. “O mais íntimo do nosso ser, aquilo que está guardado no território da memória”, explica a indígena. Os saberes partilhados durante o 1° Encontro da Juventude Xakriabá foram tecidos na força identitária do povo. Repetiu-se ininterruptamente o “valor do saber” que transita entre gerações. “Vivenciar nossa espiritualidade, realizar os rituais, traçar as pinturas sobre nossas peles. Isso é a nossa religião. É o que está no mais profundo do nosso ser, que se repete há milênios”, defendeu Durkwa Xakriabá.

O embate contra o epistemicídio – morte de conhecimentos, de saberes, de culturas consideradas inferiores pela cultura ocidental – é práxis costumeira para os indígenas com um pé no mundo. “Quando estamos na academia, a demarcação precisa ser diante um conhecimento que quer se colocar como superior. Estar nesses ambientes que não foram pensados para a pluralidade é uma forma de resistência”, comenta Jucyrema Xakriabá. “A espiritualidade nos leva ao sagrado que lembra quem somos, nos faz redescobrir. Seja na universidade, ou na aldeia, o mais importante é sabermos quem somos. É preciso mostrar a verdadeira face”, recordou Durkwa Xakriabá.

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

O terceiro e último dia de encontro estendeu seu debate para os saberes tradicionais, histórias orais transmitidas entre gerações. “Não podemos deixar que nos massacrem ao roubar nossa identidade escrita e viva em nossos livros vivos. Embaixo da árvore, ao lado da casa do meu avô, muito conhecimento se partilhou. Temos que dar continuidade ao que está mais dentro da gente”, afirmou Durkwa. “É preciso pensar a vida do povo a partir da sua história. Cada vaso de barro que é moldado com a terra, é um pedaço do povo que se molda. Nossa juventude precisa ser assim: carregar consigo, aonde quer que vá, um pedaço do território que é sua raiz”, lembrou Célia Xakriabá.

“Em 2015 a juventude Xakriabá passou a integrar os movimentos nacionais por direitos indígenas. Surgiu então o desejo de começarmos um processo de formação a partir dos mais velhos, dos anciões e pajés”, comentou Juvana Sawidi Xakriabá ao fazer memória da gênese da assembleia da juventude. “Estávamos o tempo todo nesse processo de luta. Um pé na aldeia, em nossas lutas locais, e um pé no mundo em busca de direitos nacionais em prol dos povos indígenas. Para nós era importante a nossa formação acontecer a partir do resgate cultural, firmar nossas raízes. Assim, traçarmos metas para ajudar nosso próprio povo em seu resgate cultural”.

Enraizados, os jovens Xakriabá seguem em marcha. Passo a passo, firma-se na memória para enfrentar a conjuntura de violações e retrocessos. “O encontro fortalece a nossa base para avançar nas lutas por justiça e demarcação. Nos três dias reforçamos a nossa cultura, identidade e a esperança enquanto povo”, garante Juvana Sawidi. “A nossa geração enfrenta um dos piores momentos para as políticas indigenistas. Ss assaltos de direitos vem de todos os lados. O encontro fortaleceu os nossos jovens para estar na luta à altura daquilo que nosso povo precisa. Dizemos: nossa juventude está organizada. Quando as nossas lideranças mais velhas tombarem, estaremos aqui para dar continuidade, em um único passo”.

Povo Xakriabá: resiliência na história

Nos séculos XIX e XX, os Xakriabá sofreram sucessivas perdas de terras por invasões de fazendeiros. Permanentemente, os Xakriabás sofreram com a presença e as incursões grileiras de forasteiros – território este entre os rios Peruaçu e Itacarambi, afluentes da margem esquerda do rio São Francisco. Januário Cardoso de Almeida, filho de Matias Cardoso, doou um pedaço de terra para os Xakriabá, para que estes não se espalhassem e ficassem só trabalhando para ele. Os Xakriabá então registraram a terra em dois cartórios: o de Januária e o de Ouro Preto. Mas em 1850 foi criada a Lei de Terras, pela qual a terra Xakriabá se tornou devoluta, pertencendo ao governo (PIB, 2017).

A situação fundiária e as violências contra os povos indígenas se agravaram com a mercantilização das terras no século XX. Aumentou a presença de grileiros em áreas tradicionais. Cresceram os casos de “intimidação” dos indígenas para que aderissem à proposta de venda de seus territórios numa nítida estratégia de fragmentar o território tradicional. Na terra dos Xakriabá, o episódio de invasão da Rancharia e a construção de um “curral de varas”, sobre o santuário sagrado do povo, são marcos importantes numa história em que sobra resiliência. “Muitos territórios sagrados viraram lugar de criar gado. Nossa história era pisoteada por bois”, recordou Zé do Bem Vindo Xakriabá. Os indígenas enfrentaram seu inimigos sem temer, mas logo perceberam que a batalha seria desigual. A covardia levou os invasores a atearem fogo naquilo que era dos Xakriabá, lembra Zé do Bem Vindo. Hoje os anciãos contam a história que transita na memória do povo como um episódio de violência, perseguição e dispersão do povo.

Em 1940, criou-se uma nova lei, pela qual o proprietário precisava ter registro de compra da terra. Os Xakriabá não possuíam esse documento devido ao fato de a terra ter sido doada. Então, a terra passou a ser devoluta novamente. Ao se organizar e correr atrás de providências para ter a posse da terra legalmente, a comunidade contribuiu com dinheiro para que as lideranças pudessem viajar para o Rio de Janeiro em busca de apoio, ajuda e informações (PIB, 2017). Nesse contexto, em nome da sobrevivência física, restringiram sua cultura. A língua do povo se enfraqueceu – poucos falam fluentemente. A perseguição incubou a cultura, a espiritualidade e a identidade Xakriabá. Contudo, o que permanece incubado carrega em si um potencial. É latente o desejo de ressignificação, de reinvenção.

Os conflitos permanecem. Os constantes ataques realizados por posseiros e políticos levaram oito lideranças Xakriabá a serem incluídas no Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos do Estado de Minas Gerais. Mesmo diante de perseguições e violências, a juventude insiste em tecer a memória com os fios do presente, na retomada dos saberes indígenas e dos territórios tradicionais. “Avançaremos até onde encontra-se nosso local de nascimento”, aponta Durkwa Xakriabá em caminhada para o cerne de seu povo. “Avançaremos sempre. Em demarcação e resistência”, completa. O povo Xakriabá avança. Demarca espaços. Desobedece quem os querem de cabeça baixa. É firme no embate. O encontro da juventude xakriabá prova que o potencial do povo é a luta, a resistência e a resiliência.

Esta reportagem foi publicada no no Jornal Porantim 400

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